Geoglifos do Acre - gigantescas estruturas de terra revelam o passado das culturas amazônicas






Entrevista com Alceu Ranzi
Fotos: Sergio Valle

01 – Alceu, vamos começar com uma pergunta óbvia. O que é um geoglifo? Tecnicamente, como ele é construído? Existem diferenças de construção entre os geoglifos brasileiros e os encontrados no Chile, Peru e Bolívia?

Ranzi - A palavra geoglifo é composta de dois vocábulos. Geo - significa terra. Glifo – com o significado de marca, sinal ou grife. Os geoglifos amazônicos são construídos pela escavação de um fosso e a terra escavada é colocada cuidadosamente na parte externa formando uma mureta. Forma-se assim um desenho geométrico, em alto e baixo relevo. Os geoglifos brasileiros são de grandes dimensões, acarretando um movimento de terra fantástico. Nos Andes os geoglifos ocorrem em áreas de deserto, no Brasil é em plena floresta amazônica.

02 – Como o senhor se envolveu com este assunto? Conte-nos um pouco sobre suas pesquisas e dedicação aos geoglifos brasileiros.

Ranzi - Em 1977, no Acre, acompanhamos uma expedição, sob a coordenação do Dr. Ondemar Dias da UFRJ. Naquela oportunidade foi localizado o primeiro geoglifo, um grande circulo na Fazenda Palmares, no eixo da BR 317.
Em 1986 lideramos uma busca aérea e conseguimos as primeiras fotografias de um geoglifo do alto. O fotógrafo foi o acreano Agenor Mariano e a foto foi publicada no Jornal O Rio Branco. Hoje esse geoglifo é denominado Seu Chiquinho.
Depois disso, por mais de dez anos, nos dedicamos inteiramente à paleontologia, estudo da megafauna da Amazônia. Ao mesmo tempo os arqueólogos se dedicaram a escavar, catalogar e analisar as cerâmicas das “estruturas de terra”. Talvez os arqueólogos, atraídos pela cerâmica e não pela observação aérea, não tenham percebido a monumentalidade dos geoglifos.
Em 1999, por puro acaso, avistamos da janela de um avião comercial, outro geoglifo circular, num vôo entre Porto Velho e Rio Branco. Notar que nossa formação básica é em geografia e paisagem que visualizamos do alto nos deixou impressionados.
Como o assunto, apesar de tantos anos de conhecimento, não havia chegado ao grande público, resolvemos registrar com fotos e fazer ampla divulgação. Assim, conseguimos com o apoio do Governo do Estado do Acre, os recursos e o avião para os sobrevôos. O fotógrafo que nos acompanhou foi o Édison Caetano. As fotos ficaram belíssimas e foram amplamente divulgadas pela imprensa nacional e internacional.

03 – Os geoglifos amazônicos são conhecidos desde a década de 70. Deste então, como andam os trabalhos de pesquisa dessas imensas estruturas? Existe atualmente algum grande projeto de catalogação relacionado a eles?

Ranzi – Como disse anteriormente os geoglifos do Acre são conhecidos desde 1977. Mas o primeiro artigo sobre o tema só foi publicado em 1988 por Ondemar Dias e Eliana Carvalho, portanto onze anos depois da descoberta. O grande público só tomou conhecimento mesmo a partir do ano 2000 com as fotos do Edison Caetano.
Atualmente os projetos em andamento estão sob a Coordenação da Dra. Denise Schaan da Universidade Federal do Pará. Um dos projetos, para a escavação de cinco geoglifos, conta com a colaboração da Universidade Federal do Acre, Museu Goeldi e a Universidade de Helsinki, com financiamento da Academia de Ciências da Finlândia. O outro projeto, com o apoio do CNPq, da Universidade Federal do Acre e do Governo do Estado do Acre, visa o registro, a catalogação, fotos e desenhos de todos os geoglifos conhecidos, fazendo o uso de sobrevôos, fotografias aéreas e imagens de satélite.

04 – Quando falamos em geoglifos, imediatamente lembramos das famosas Linhas de Nasca, no Peru. Tive a oportunidade de conhecer este e outros localizados em Arica e Iquique, no norte do Chile. Podemos afirmar que ocorreu na América do Sul, um grande “movimento” de construção de geoglifos entre 500 aC e 1000 dC? Os geoglifos brasileiros fariam parte deste “movimento”?

Ranzi - Acredito que devemos ser parcimoniosos ao tentar fazer relação entre os geoglifos clássicos do Atacama e os geoglifos do Acre. São duas realidades distintas, uma nas terras úmidas da Amazônia e a outra no deserto do Atacama.

05 – Muitos arqueólogos chilenos afirmam que estas manifestações serviam como sinais de orientação para caravanas de comércio entre o litoral e as terras altas. Esta idéia faz sentido, uma vez que os geoglifos estão localizadas no topo de morros, em locais estratégicos. O que pensa desta teoria? Os geoglifos brasileiros teriam a mesma função?

Ranzi - Os geoglifos do Atacama estão em locais elevados, permitindo sua visão à distância. Os geoglifos brasileiros estão na planície, pela inexistência de morros, a sua vista completa é sempre limitada. Na Amazônia, a visão do alto, em sua plenitude, somente é possível com o uso de pequenos aviões e helicópteros.

06 – Muitos sítios arqueológicos – principalmente no Peru – são saqueados e destruídos em busca de objetos metálicos pelos huaqueros (caçadores de tesouros). Os geoglifos brasileiros não correm este risco. Hoje, quais são os fatores que ameaçam a integridade dos geoglifos?

Ranzi - O que ameaça os geoglifos do Acre é o desconhecimento e a ignorância. Apesar da legislação, rodovias federais foram abertas, construídas e asfaltadas, cortando geoglifos. Projetos de assentamento do Incra foram implantados em áreas de ocorrência de geoglifos. Ao mesmo tempo em que o desmatamento da Amazônia revelou os geoglifos, o pisoteio do gado e as máquinas agrícolas são uma ameaça constante. A partir da divulgação da existência desses monumentos, o Ministério Público Federal e o Ministério Público Estadual do Acre, em recomendação conjunta, determinaram que doravante, nos estudos de impacto ambiental dos projetos em implantação, a variável geoglifos seja levada em consideração.

07 – Alceu, uma coisa me desperta curiosidade... Os geoglifos de Nasca e do Atacama foram feitos em terreno limpo, sem árvores. Os geoglifos brasileiros estão sob a floresta. Devemos entender que, na época de sua construção, não existia a floresta amazônica?

Ranzi - Estudando a megafauna do Acre, chegamos à conclusão de que há alguns milhares de anos passados na Amazônia Ocidental predominava um ambiente de savana. Foi uma surpresa. Mas isso só veio confirmar os modelos propostos por Aziz Ab’Saber e outros. Devemos observar que os geoglifos foram construídos por uma cultura que viveu no Acre, a partir de 2000 anos passados. A ocorrência de geoglifos no Acre também é um forte indicativo de ausência da floresta. Posteriormente, a floresta, como nós conhecemos, ocupou, recobriu e mascarou a paisagem cultural dos povos construtores de geoglifos. O mesmo ocorreu na América Central, onde a floresta recobriu os templos e pirâmides Maias em Honduras e Guatemala.

08 – Quais foram às culturas amazônicas responsáveis pela construção dos geoglifos? Esses povos representaram, como em Nasca, figuras antropomorfas e zoomorfas? Pode haver alguma ligação entre as figuras e a mitologia desses povos?

Ranzi - Essas são perguntas que os projetos multidisciplinares em andamento tentarão responder. Pelo que sabemos a representação dos geoglifos do Acre é composta por desenhos geométricos, em especial círculos simples e duplos, retângulos, quadrados simples e duplos e octógonos. A monumentalidade poderia ser um traço marcante comum.

09 – Recentemente, foi anunciada a investigação de um monumento localizado no Amapá, semelhante a Stonehenge. Sua função como observatório celeste é inegável. Os índios brasileiros manifestavam de forma rotineira essa preocupação de observar os corpos celestes? Acredita que os geoglifos tenham alguma ligação com isso?

Ranzi - O Dr. Michael Heckenberger, da Universidade da Florida, acredita que os geoglifos do Acre tinham finalidades cerimoniais. Essa seria uma das razões de sua monumentalidade – a comunicação com entes superiores. Como não existem pedras no Acre, só restaram os vestígios da movimentação intensa de terra. Não temos inferências para afirmar que os geoglifos estavam alinhados ou direcionados com algum corpo celeste.

10 – Quando falamos em geoglifos amazônicos, devemos pensar em que outros Estados além do Acre? No norte da Bolívia foram encontradas manifestações deste gênero? Quantas formações foram localizadas até o momento?

Ranzi - Além do Acre, já temos informações seguras da ocorrência de geoglifos nos Estados do Amazonas e Rondônia. Na região de Baures, no Departamento do Beni, na Bolívia, o Dr. Clark Erickson registrou a ocorrência dessas estruturas. Os últimos levantamentos (junho de 2008) indicam que aproximadamente 150 dessas estruturas já foram catalogadas.

11 – Os geoglifos de Nasca são conhecidos mundialmente graças às desastrosas teorias de Erich Von Daniken. No Brasil, os geoglifos são desconhecidos do grande público. Como a imprensa brasileira está tratando o assunto? Existe sensacionalismo na abordagem do tema?

Ranzi – Embora fazer jornalismo científico seja uma arte, existem várias reportagens escritas de boa qualidade sobre os geoglifos do Acre, mas é difícil ao profissional escapar dos “deuses astronautas”. Os geoglifos foram tema de reportagens das Revistas IstoÉ, National Geographic e Época. Vários dos grandes jornais brasileiros se dedicaram ao assunto, alguns enviaram seus próprios profissionais ao Acre. Vale ressaltar que na televisão os geoglifos do Acre são temas constantes nas emissoras de Rio Branco e já foram veiculados pelo Fantástico da Rede Globo. Digno de nota é que, nesses oito anos de nosso envolvimento maior com o assunto, os jornalistas profissionais do Acre perceberam o potencial midiático dos geoglifos e com seu trabalho tem pautado a grande imprensa nacional e internacional. A maioria das fotos que mostram os geoglifos foi obra de profissionais do Acre, em especial Édison Caetano e Sergio Vale.

12 – Da década de 70 para cá, quais as principais inovações tecnológicas que permitiram o melhor estudo dos geoglifos? Vejo pesquisadores autônomos que hoje utilizam ferramentas caseiras como o Gloogle Earth, com resultados surpreendentes.

Ranzi - Até a década de 1970 a Amazônia Ocidental estava quase intocada pelos grandes projetos agropecuários. A floresta estava em pé e os geoglifos invisíveis. O uso intensivo de sobrevôos, para a obtenção de fotos aéreas visando o registro dos geoglifos aconteceu a partir do ano de 2000. Imagens de satélite com boa resolução e o advento do Google Earth permitiram a localização de novos geoglifos sem a necessidade de usar aviões. Em 2007, juntamente com Roberto Feres e Foster Brown da Universidade do Acre, publicamos um artigo sobre o uso do Google Earth para a localização de geoglifos na Amazônia (Ranzi, A. & Feres, R. e Brown, F. 2007 Internet Software Programs Aid in Search for Amazonian Geoglyphs. American Geophysical Union - EOS (88)21:226 e 229).

13 – Em Nasca, a arqueóloga Maria Reich travou uma longa e dura batalha até conseguir a proteção daqueles geoglifos. Hoje, Nasca é Patrimônio da Humanidade. Qual o caminho a seguir para a preservação de nossos geoglifos? Transformar aglomerações de geoglifos em Parques Nacionais com visitação controlada é uma opção?

Ranzi - O Governo do Acre demonstrou interesse em divulgar os geoglifos e desenvolver uma indústria turística, tendo os geoglifos como atração. Estuda-se a possibilidade da construção de torres de observação. Ao mesmo tempo o Governo do Acre, por recomendação do governador Binho Marques, está investindo em sua catalogação, registro, documentação e publicação de um livro. Apesar do esforço do Governo do Acre, como os geoglifos são patrimônio da União, em última análise compete ao IPHAN às medidas de educação patrimonial e preservação. O Dr. Martti Parssinen, da Universidade de Helsinki, acredita que os geoglifos do Acre possuem o potencial para tombamento, pela UNESCO, como Patrimônio da Humanidade. Mas para isso acontecer primeiro teremos que fazer o dever de casa - tombar os geoglifos como Patrimônio de todos os brasileiros.

Alceu Ranzi - Membro Efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Acre. Graduado em Geografia, Mestre em Geocências e Doutor em Ecologia da Vida Selvagem. Autor do livro Paleoecologia da Amazônia - Megafauna do Pleistoceno, Editora da UFSC, Florianópolis, 2000. Juntamente com Rodrigo Aguiar é autor do livro Geoglifos da Amazônia - Perspectiva Aérea, Faculdades Energia, Florianópolis. Atualmente é membro do Grupo de Pesquisas Geoglifos da Amazônia, sob a coordenação da Dra. Denise Schaan da UFPA e da Dra. Miriam Bueno da Universidade Federal do Acre. Site: www.geoglifos.com.br

Comentários

  1. Adorei essa entrevista e gostei mais ainda do blog. Muito bom trabalho.

    Dr. Ranzi é muito gente boa e foi quem primeiramente me ensinou sobre os Geoglifos do Acre.

    Vocês têm alguma literatura ou referências que eu possa pesquisa mais à fundo isso?

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  2. Olá Tito,
    Infelizmente não. Livros sobre geoglifos ainda são bastante raros. Mas você pode encontrar referências sobre eles no próprio Arqueologia Americana. Vão lá na coluna MARCADORES e procure por "livros". Vai encontrar algumas indicações.

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  3. Amigos, que estará disponível em bibliotecas, visitantes e estudantes, enviamos um resumo da tradição aborígene de Mariche-Cumanagoto, os marinheiros antigos da América do Sul (14.000 a> 30.800 BP). Inclui fontes de estudo elementar, registros históricos, e uma lista de pesquisas arqueológicas referentes ao período Paleo-Indian Arcaica, nas montanhas, planícies e áreas submarinas da Venezuela e do Mar das Antilhas, publicados entre 1967 e 2012 pelo pesquisador Miguel Angel Prieto. Eles também enviar um resumo muito recentes. Obrigado. Saudações.

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