Descoberto um “trecho do Caminho de Peabiru" no Uruguai?

A mídia uruguaia, notadamente páginas turísticas e governamentais na internet, tem noticiado a existência de um caminho indígena na localidade de Guichón, no Departamento (Estado) de Paysandú, região noroeste do país. Diz-se que ele poderia fazer parte do famoso Caminho de Peabiru, uma rota milenar sul-americana que ligava o oceano Atlântico ao Pacífico. Há, porém, quem conteste tal tese, devido à falta de pesquisas mais profundas (Ver em: Melhor ter cautela).

Conforme disse ao AND o pesquisador e escritor Juan Carlos Palacios, ex-presidente do Museu Histórico do Rio Uruguai e um dos pioneiros no avistamento da trilha nos anos 1970, esta iniciaria na confluência do rio Queguay com o Arroio Corrales e findaria aproximadamente no Rio Negro, na Picada de Oribe, percorrendo cerca de 115 km no sentido noroeste-sudeste. Outras versões falam de 60 km.

Certos trechos da linha marcada no chão, segundo Palacios, se assemelham a uma via de trânsito de pessoas e/ou animais, que apresenta desgaste no solo. Em outros se mostra apenas como uma diferença na vegetação campeira, uma cobertura vegetal mais rala e clara. E em outros trechos é nitidamente um filão de basalto que aflora à superfície do solo.

A largura média do designado por moradores de Guichón como Camino de los Índios é de 3 a 4 metros, de acordo com Palacios. Outras versões mencionam que esta é de 6 a 8 metros.

ARGENTINO E PARAGUAIO INVESTIGAM

Palacios, ao desenvolver estudos sobre o caminho em 2002, solicitou uma análise por parte do geólogo argentino Alfredo Ernst e do professor paraguaio Félix Gimenez Gomez. Ernst examinou in loco a marca existente no chão e afirmou que “não se tratava de uma falha geológica”. Era obra humana, portanto.

Por sua vez o professor Gomez, falecido em 2011 e conhecido nos meios intelectuais  latino-americanos como Félix de Guarania, famoso especialista em cultura  guarani,  opinou que poderia se tratar de um dos muitos trechos de caminhos pré-hispânicos da América do Sul chamados de Tape Avirú (ou Peabiru).

CARACTERÍSTICA CURIOSA

Palacios disse ao AND que uma característica curiosa da trilha parece confirmar uma semelhança com o sistema peabiruano: a de ligar o Atlântico ao Pacífico. “O caminho dos índios, de Guichón, possivelmente fez parte da rede viária pré-colombiana”- afirmou o estudioso.

E complementou: “Ficou evidente em nossas excursões em campo e verificação de mapas que o traçado partido de Guichón toma uma direção geral sudeste, que leva à costa atlântica, ao Departamento (Estado) de Rocha. Precisamente um prolongamento desta linha sobre o mapa se encaixa com a Ruta Nacional no.14, aquela que em Rocha é conhecida como antigo caminho indígena, existindo até um ramal identificado oficialmente como Camino del Índio”.

Continuando, disse: “Uma velha tradição oral uruguaia afirma que as populações indígenas tinham um caminho que partindo de Rocha (oceano Atlântico) permitia chegar a Paysandú (Guichón), cruzar o Rio Uruguai e continuar por território argentino até acessar o Alto Peru/Bolívia (e indiretamente alcançar o oceano Pacífico, por uma bifurcação).”

UM MITO POPULAR

O arqueólogo Andrés Gascue, da Universidade da República (UDELAR), de Montevidéu, tem fortes dúvidas de que o tracejado visto em Guichón seja sequer um caminho indígena.

Afirmou ao AND : “Existe aqui no Uruguai um mito popular de que haveria um caminho de palmeiras, um corredor de palmeiras, conectando Rocha (na região litorânea) a Guichón, e que seus autores teriam sido grupos indígenas. Mas isso não é aceitável pois inclusive os coqueiros são de espécies diferentes, não há como estabelecer uma relação. Então o chamado Camino de los Indios é um mito popular. Muitas vezes essas supostas linhas não possuem presença de artefatos indígenas (que possam ser examinados), não há resíduos que possam ser datados, então do ponto de vista cientifico é muito difícil estabelecer vínculo com atividades pré-colombianas. Esses supostos traçados de linhas no solo poderiam ser qualquer coisa, difícil dizer. (Quem sabe poderiam ser) estruturas de limpeza ou manejo dos campos (por agricultores), etc., qualquer coisa.”

VESTIGIOS ARQUEOLÓGICOS NO LITORAL

Por sua vez o antropólogo e arqueólogo José Maria Lopez Mazz,da Universidade da República (UDELAR), de Montevidéu, informou ao AND que a via existente no litoral atlântico, em Rocha, que conserva o nome de Camino del Índio (mencionado por Palacios) se trata efetivamente de um segmento indígena e está “associado a numerosos sítios arqueológicos de vários milhares de anos de antiguidade.”

Disse também existir um outro caminho pré-hispânico, portanto indígena, de direção oeste-leste, que ia desde a região da Colônia de Sacramento (no Rio da Prata, extremo sudoeste do país) até a área da atual capital gaúcha, Porto Alegre.

O especialista, no entanto, não confirma a existência do suposto Caminho dos Índios em Guichón.

EM UM CIRCO DE PARIS

Se estiver correta a suposição do pesquisador Fábio K. Nunes (Ver em: Melhor ter Cautela), o camino indígena de Guichón teria como autores os Charrúa ou seus aparentados Minuano e Guenoa.

Os charrúas habitaram o norte do Rio da Prata. Após a conquista/invasão espanhola, anos 1500, afastaram-se da margem daquele rio e fundiram-se com outras tribos formando a macro-etnia charrúa. Guichón fazia parte de seu território.

Sempre perseguidos pelos não-índios, chegaram aos anos 1800 sob uma terrível pretensão das classes dominantes: extinguir a tribo. É que no início da República, conforme o historiador Andrés Azpiroz (*), os fazendeiros exigiram do presidente Fructuoso Rivera uma providência definitiva contra os índios “infiéis” (opositores ao sistema missioneiro dos jesuítas). Acusavam-lhes principalmente de roubo de gado.

Em 11 de abril de 1831, então, os «malvados que não conhecem freio nenhum” foram atraídos a uma armadilha, embebedados e atacados por soldados em uma ação de extermínio. Organizada e executada por Fructuoso e seu sobrinho Bernabé, comandante militar.

 “Este episódio, conhecido como Salsipuedes, em alusão ao lugar da matança (um arroio vizinho a Guichón) exterminou boa parte das tolderías (acampamentos indígenas)... não só através da morte mas também da prisão forçada e do cativeiro”, conta Aspiroz. Muitos dos cativos charrúas foram entregues como escravos a famílias ricas de Montevidéu e do interior do país.

Mas a violência genocida não havia terminado. No ano seguinte 4 dos prisioneiros foram entregues ao francês François De Curel, diretor de um colégio de Montevidéu, para serem levados a Paris sob pretexto de serem examinados por cientistas, por “serem espécimes de um povo em extinção”. Lá chegando, porém, foram colocados por Curel como atrações de um tipo de circo ou zoológico humano.

Essa tragédia causou a morte rápida, por humilhação e maus tratos físicos, de um pajé chamado Senacua Senaqué e do cacique Vaimacá Pirú.

Há uma versão de que uma jovem, Micaela Guyunusa, sua bebê recém-nascida e um guerreiro, Laureano Tacuabé, conseguiram fugir de Curel.

(*) De “selvagens” a heróis: a construção da voz e da imagem do “índio Charrúa” de 1830 até início do século XX. Artigo publicado em 2017.

MELHOR TER CAUTELA

Fábio Krawulski Nunes

Nos meus 15 anos de pesquisa sobre o caminho indígena multicultural do Peabiru/Tape Aviru no ramal do vale do Rio Itapocu (litoral norte de S. Catarina), procurei na medida do possível o maior número de evidências baseadas no lado material (historiografia e arqueologia) para não "colocar a carroça na frente dos bois". O que pretendo dizer com isso? Precisamos antes de tudo ter compromisso com a veracidade dos fatos históricos e arqueológicos. No caso deste "Camino de los Indios" ou "Camino del Indio" nas proximidades do rio Queguay no município de Guichón, seria muito fácil afirmar que esse vestígio físico com característica antrópica se assemelha (à primeira vista) com um ramal descoberto do Peabiru/Tape Aviru. Contudo, se carece de maiores estudos arqueológicos, historiográficos e etnográficos para homologar essa hipótese. Até o presente momento, o material bibliográfico consultado na internet sobre o lugar mostra apenas teorias especulativas, o que demandaria um trabalho integrado entre antropólogos, arqueólogos e historiadores do Uruguai para um parecer técnico definitivo. Digo isso pois alguns pesquisadores do lugar acreditam que seja um novo ramal do Peabiru/Tape Aviru, enquanto que outros acreditam ser a "Ruta de los Charrúas" ou "Cachuera". Há também aqueles que acreditam se tratar de um caminho colonial dos tropeiros e ainda os que acreditam que tudo isso não passa da cultura imaterial dos moradores da região (crendice popular). Particularmente falando, se fosse para antecipar um veredito (me baseando até o presente momento nas evidências arqueológicas e etnográficas mostradas em trabalhos consultados), poderia concluir por uma relação direta do caminho de Guichón com povos de origem patagônica como os Charrúa ou subgrupos Minuano/Guenoa. Quem sabe, poderia relacionar também com outros povos indígenas da vizinhança uruguaia como os Guarani, por exemplo e ainda o aproveitamento tardio desse vestígio físico no período colonial pelos tropeiros. Como são poucas as referências bibliográficas e também por eu não conhecer o local (in situ), utilizarei da cautela como a melhor resposta, aguardando algum trabalho acadêmico aprofundado e suas respectivas conclusões. Um exemplo seria as origens etnográficas não definidas dos caminhos indígenas milenares amazônicos que foram pesquisados recentemente no entorno de alguns geoglifos no leste do estado do Acre.

Fonte: https://anovademocracia.com.br/noticias/15424-descoberto-um-trecho-do-caminho-de-peabiru-no-uruguai

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