Legado indígena contra o mito colonial: arqueologia confirma Amazônia manejada há milênios e grandes cidades integradas à natureza
Terra preta, manejo de plantas e redes urbanas mostram a Amazônia como obra indígena e guia para cidades resilientes
Por: Rodrigo Chagas
- 18.dez.2025
A ideia de que a Amazônia teria sido um vazio verde, isolado
e inóspito, está ruindo. A imposição de uma tradiçãocolonial e eurocentrada consolidou por séculos a imagem da maior
floresta tropical do mundo como terra de escassez, habitada apenas por
populações consideradas “primitivas”. Mas descobertas recentes da arqueologia
brasileira vêm desmontando esse mito e provando que a história de abundância,
tecnologia e bem viver não pôde ser contada pelos povos indígenas dizimados ao
longo dos últimos séculos
Nas últimas décadas, escavações e estudos em diferentes
pontos da região revelaram evidências de sociedades indígenas altamente
complexas, que manejavam o território com engenhosidade e sofisticação.
Estima-se que, antes da invasão europeia, cerca de 10 milhões de pessoas viviam
na Amazônia, falantes de ao menos 170 línguas diferentes, em uma diversidade de
modos de vida e formas de organização social. Cidades planejadas, redes de
estradas, técnicas avançadas de cultivo e a produção da terra preta – um solo
fértil criado por povos originários há milênios – revelam uma floresta
construída, mais do que apenas preservada.
Essa memória redescoberta tem implicações profundas não
apenas sobre o passado da região, mas também sobre seu futuro. Em um cenário de
crise climática global e colapso urbano, pesquisadores apontam que os modos de
vida e as tecnologias ancestrais da Amazônia podem inspirar soluções
sustentáveis para as cidades atuais, especialmente aquelas mais expostas aos
extremos do clima, como Belém(PA), capital amazônica que sediou a 30ª Conferência das Nações Unidas sobreMudanças Climáticas (COP30) e já é apontada como uma das cidades mais
quentes do mundo até 2050.
Nesta reportagem, o Brasil de Fato ouviu
dois importantes nomes da arqueologia amazônica: o professor Eduardo Góes
Neves, referência internacional nos estudos sobre as civilizações da floresta,
e a arqueóloga paraense Mayara Mariano, que investiga como esses saberes podem
alimentar políticas públicas e formas de viver mais justas e resilientes.
A partir de suas descobertas e reflexões, este texto propõe
um mergulho em uma floresta viva do passado, onde abundância, diversidade e bem
viver eram parte de um projeto coletivo de longo prazo.
A floresta que foi construída: desmentindo o mito da
escassez
Por muito tempo, a Amazônia foi tratada como uma região “sem
história, sem história humana, sem história indígena e um ambiente pristino”,
afirma o arqueólogo Eduardo Neves, professor titular do Museu de Arqueologia e
Etnologia da Universidade de São Paulo (USP) e um dos principais nomes da
arqueologia amazônica no Brasil. Essa leitura, segundo ele, dominou o
pensamento acadêmico e político sobre a floresta ao longo de boa parte do
século 20. “Essa visão serviu de justificativa para vários projetos de desenvolvimento
econômico catastróficos”, afirma.
Mayara Mariano, arqueóloga e pesquisadora Museu Paraense
Emílio Goeldi, é responsável pelo estudo Tecnologias ancestrais para o
bem viver em cidades da Amazônia, do LabCidade, uma organização sediada
em Belém (PA) que visa promover cidades amazônicas mais justas, resilientes e
adaptadas às mudanças climáticas. Ela reforça que essa imagem da Amazônia como
espaço vazio e atrasado foi construída a partir de um discurso eurocentrado. “A
nossa missão é desmanchar e mudar essa ideia vendida pelo eurocentrismo de que
a Amazônia era um lugar inóspito, um lugar de escassez, um lugar difícil.”
Para ela, esse imaginário foi ativamente instrumentalizado
pelo Estado brasileiro: “Esse discurso ideológico determinista de escassez foi
muito utilizado no âmbito da ditadura militar mesmo, para ocupação desse
território, para a propagação da violência contra os povos indígenas.”
O próprio campo científico colaborou com essa distorção.
Neves lembra que, no século 19, os primeiros cientistas naturalistas que
percorreram a região interpretaram a diversidade cultural como um traço
negativo. “Eles achavam que essa diversidade era reflexo de um processo de
degeneração. Associavam isso à condição tropical”, explica o arqueólogo. “Isso
alimentou um colonialismo interno muito forte até hoje no nosso país”.
Mas essa narrativa começa a ruir à medida que novas
evidências vêm à tona. Escavações realizadas nas últimas décadas ajudam a
remontar o cenário Grande Amazônia antes da invasão europeia. Essas populações
que somavam milhões de pessoas e falavam centenas de línguas diferentes,
domesticavam espécies vegetais, produziam alimentos e modificavam o ambiente em
larga escala.
Uma das provas mais concretas desse manejo está no próprio
chão. A chamada terra preta de índio é um solo escuro e muito fértil,
encontrado em diversos pontos da Amazônia, associado a antigas áreas de
ocupação humana. Em geral, aparece junto a vestígios como carvões e fragmentos
de cerâmica e, ainda hoje, é valorizada por populações indígenas e ribeirinhas
por manter produtividade por longos períodos.
Em campo, Neves conta que aprendeu na prática como esse
manejo do solo tem técnica e observação fina. Ao lembrar uma escavação feita em
1999, na comunidade Lago do Limão, no Amazonas, ele relata que um morador pediu
para a equipe parar de cavar porque “vocês estão remexendo muito a minha terra
preta”. O motivo, diz o arqueólogo, não era só o buraco, mas o retorno do solo
“sem o caco de cerâmica”. Segundo o morador, os fragmentos ajudam a reter a
umidade, evitando que a terra encharque na chuva e rache na seca, uma
explicação que Neves diz ter virado lição sobre por que a terra preta se mantém
estável por séculos.
A castanheira é
outro exemplo de como a floresta carrega escolhas humanas antigas. Neves chama
atenção para o fato de que, no que a ciência conhece, há dois grandes
dispersores da castanha, a cutia e a nossa espécie. Para ele, a presença de
castanhais em vários pontos da Amazônia não pode ser lida apenas como acaso
natural, mas como indício de circulação e manejo ao longo de gerações, numa
paisagem em que plantas alimentares e árvores úteis foram sendo incentivadas e
multiplicadas.
A mandioca,
espécie crucial para alimentação brasileira até os dias de hoje, foi
domesticada na Amazônia entre 8 mil e 10 mil anos atrás, e se espalhou pela
região graças a uma complexa rede de comunicação e trocas. Foi assim com outros
frutos de alto valor nutritivo, como a castanha-do-Brasil, a goiaba e diversos
tipos de palmeiras frutíferas. O feijão e a abóbora, domesticados inicialmente
nas partes baixas da Cordilheira dos Andes e nas América Central, viajaram
milhares de quilômetros até serem cultivados na Amazônia, há mais de 5 mil
anos.
“A história indígena na Amazônia é muito profunda”, afirma
Neves. “A floresta amazônica é, em larga medida, o resultado de milhares de
anos de uso humano.”
Para Mayara, essas descobertas demonstram que o modelo
amazônico não apenas existia, como também era altamente sofisticado. “Cada vez
mais a gente tem evidências do contrário daquele modelo imposto. A gente
consegue conceber que esses modos de vida indígenas estavam conectados com o
território e com a floresta de uma forma que rompe com essa caixinha
determinista do que poderia ser Amazônia.”
Ao falar de bem viver comoprática, Neves afirma que hoje existe “um conflito muito forte” entre “essa
ontologia da abertura” e uma lógica contemporânea “baseada no controle
absoluto”, descreve, ao contrapor a diversidade dos sistemas agroecológicos à
monocultura. Para o arqueólogo, o bem viver passa pela convivência com a vida
em múltiplas formas, não só pelas plantas cultivadas, mas pelos outros seres
que compartilham o território.
Cidades antigas e redes complexas na floresta
As evidências arqueológicas mostram que a Amazônia
pré-colonial não era formada apenas por pequenas aldeias isoladas. A floresta
abrigou redes de ocupação densa, cidades organizadas, conexões entre
territórios distantes e infraestrutura planejada em escala regional.
“Cidades não são sinônimo de pedra, de cimento, de ferro.
Cidades são agrupamentos humanos com planejamento, com uso do espaço, com
engenharia, com política”, afirma Eduardo Neves. Ele aponta que muitos desses
traços urbanos estavam presentes em sociedades indígenas amazônicas muito antes
da chegada dos europeus, ainda que suas materialidades tenham sido produzidas
com outros elementos, como barro, madeira, palha, e a própria floresta. “Elas
são diferentes das cidades ocidentais, mas cumprem funções semelhantes.”
Mayara Mariano reforça que é preciso romper com a ideia de
que só há urbanismo onde há verticalização ou monumentalidade. “A gente
enfrenta um grande desafio quando fala de cidades antigas, porque esse conceito
costuma ser imediatamente associado ao modelo urbano ocidental. No contexto
amazônico, porém, as formas de urbanismo se expressam por auto-gestão do
território, com infraestruturas que integram a floresta e as demais aldeias por
estradas, tecnologias próprias e modos de organização política.” Ela aponta que
há registros de aldeias interligadas por estradas, com circulação de pessoas e
bens, e que isso não é exceção: “Esses vestígios estão por toda a Amazônia.”
“A gente precisa lembrar que a Amazônia é muito grande,
então existiram diferentes formas de urbanismo, de ocupação, de organização do
território”, explica Mayara. Ela destaca que essas formas não eram nem
homogêneas nem improvisadas. “Tem muita diversidade de projeto. E isso é
justamente o que quebra esse mito da floresta sem civilização.”
Segundo Eduardo Neves, o que se vê hoje na floresta é apenas uma fração do que existiu. “Muito se perdeu com a violência da colonização. As estruturas orgânicas desaparecem, mas os solos, os padrões de ocupação, as tecnologias deixaram marcas que a arqueologia está conseguindo recuperar.”
Redes conectadas e gestão compartilhada
Ao falar de urbanismoamazônico, Neves recorre ao conceito de “cidades-jardim”, desenvolvido por
pesquisadores que atuam em parceria com povos do Alto Xingu. A ideia, explica,
é que esses arranjos urbanos não separavam a dimensão urbana da floresta ao
redor, como se houvesse um “dentro” e um “fora” desconectados. Nessa lógica, a
vegetação e os sistemas de produção de alimento não eram expulsos da cidade,
mas faziam parte dela, em uma organização territorial que mantém a floresta por
perto e, ao mesmo tempo, garante sustento e circulação.
“Nos últimos mil anos, os xinguanos conseguiram se organizar
dentro de um território. Eram grandes aldeias, com uma organicidade própria,
malocas organizadas em torno de uma praça central, áreas para manejo, para
lixeiras, paraagroflorestas”, descreve Mayara Mariano. “Essas aldeias estavam conectadas
por grandes estradas. Ao contrário do que muita gente pensa, esses povos não
estavam isolados. Existia conexão, e isso garantia uma forma de autogestão
desse território.”
Eduardo Neves lembra que, no sul da Amazônia, já foram
encontradas cerca de 50 dessas aldeias, muitas delas formando redes
interligadas, com padrões que revelam planejamento territorial e interação
contínua entre grupos distintos. “Há um princípio comum na forma como essas
cidades são construídas”, afirma. “Elas seguem eixos cardeais, têm vias de
circulação, áreas residenciais e zonas comuns. Isso é organização do espaço.
Isso é política.”
Essas cidades não se impunham sobre a floresta, eram parte
dela. A vegetação não era um obstáculo à ocupação, mas sim componente essencial
do modo de viver. “Esse urbanismo amazônico é pensado a partir da floresta. Não
é um urbanismo que elimina o que está ao redor”, diz Mayara. Para ela, é
importante romper com o mito de que só há cidade onde há verticalização.
“Cidade pode ser dispersa, pode ser baixa, pode ser integrada ao ambiente. É
cidade do mesmo jeito.”
As populações da várzea amazônica também desenvolveram
formas de habitar que dialogam com os ritmos do rio e com os ciclos da água.
“Na região do Marajó, você tem um modo de vida anfíbio”, explica a
pesquisadora. “As pessoas passam seis meses na terra firme e seis meses sobre
as águas. Isso é uma lógica urbana baseada no ambiente, não contra ele.”
Essa convivência sofisticada com os extremos naturais está
presente também nos sistemas hidráulicos antigos. Mayara destaca o exemplo dos
tesos marajoaras, montículos de terra construídos em áreas alagáveis como
estratégia de controle hídrico. “Muitas comunidades ainda usam práticas
semelhantes para barrar igarapés e controlar o fluxo da água. Quando a gente
mostra que isso já era feito há mais de mil anos, essas populações se
reconhecem nesse saber.”
Ela destaca que esses territórios não eram “selvagens”, como
a ideologia colonial tentou impor. “Quando a gente olha para essas paisagens do
passado, vê um planejamento sofisticado, mas que não está baseado na
destruição. São formas de viver que articulam diversidade, floresta e
autonomia.”
Crise climática e caminhos de “bem viver” para as cidades
do presente
A Amazônia de hoje vive uma contradição: ao mesmo tempo em
que é apresentada como reserva estratégica para o planeta, também é um
dos territóriosmais afetados pelas mudanças climáticas. As cidades da região enfrentam
aumento de temperaturas, estiagens prolongadas, chuvas intensas, inundações
frequentes e desigualdades acentuadas por décadas de ausência de políticas
públicas. Nesse contexto, as descobertas arqueológicas ganham ainda mais
relevância, não apenas para recontar a história da floresta, mas para repensar
o futuro.
“Essas cidades indígenas não eram antagônicas à floresta.
Elas são um modelo de como é possível viver com o ambiente e não contra ele”,
afirma Eduardo Neves. Para o arqueólogo, a principal contribuição da
arqueologia da Amazônia está em revelar alternativas reais ao modelo urbano
dominante, que frequentemente ignora os ciclos naturais e impõe lógicas de
destruição. “Essas experiências do passado mostram que dá para pensar em outros
futuros.”
Belém, que sediou a COP30 em 2025, é hoje uma das capitais
mais vulneráveis da América Latina à crise do clima. Estudo divulgado por
pesquisadores do jornal The Washington Post em parceria com a
ONG CarbonPlan aponta que a cidade deve se tornar o segundo centro urbano mais
quente do mundo até 2050, com projeção de até 222 dias de calor extremo por
ano. A população periférica, com menos acesso a áreas verdes, água tratada e
saneamento, já sente os efeitos: secas mais longas, escassez de alimentos,
sensação térmica insuportável e alagamentos recorrentes.
Na avaliação de Mayara Mariano, natural de Belém e moradora
da cidade, esses impactos climáticos não podem ser separados da maneira como o
território foi historicamente ocupado. “A gente precisa enfrentar esse modelo
de cidade que foi implantado aqui, que não dialoga com o ambiente e que
reproduz desigualdades. As cidades indígenas mostraram que é possível viver com
diversidade, respeitando os ciclos da água, do tempo, da floresta”, afirma.
Ela destaca que as soluçõespara o futuro podem e devem partir de quem vive nesses territórios. “Não é
sobre voltar ao passado. É sobre reconhecer que os saberes que estão aqui há
milênios ainda têm potência. O que a arqueologia está mostrando é que outras
formas de vida sempre foram possíveis.”
Para Neves, pensar o bem viver hoje também implica traduzir
essa lógica para o urbano, o que ele chama de “florestar as cidades”. Ao
comentar exemplos de urbanismo amazônico antigo, ele afirma que a floresta
“vivia dentro” dos arranjos urbanos, em vez de ser empurrada para fora. É a
partir daí que defende um redesenho das capitais amazônicas que leve a sério
rios, igarapés e marés, num exercício de “letramento paisagístico”. “Eu não
consigo pensar num futuro para Belém que não contemple essa dimensão de ser uma
cidade aquática”, diz. “A cidade tem que encontrar um jeito de dialogar… com
essa vocação de ser uma cidade de esponja”, acrescenta, defendendo que ela
precisa “se associar à água e não tentar lutar incessantemente contra a água”.
Mayara Mariano puxa essa mesma discussão para a política
pública e insiste que, se o bem viver é um horizonte, ele precisa ser
planejado: “talvez a modernidade é ancestral”, afirma, ao defender que essas
tecnologias e modos de vida não podem ficar só no passado, mas virar ação
concreta de adaptação.
Editado por: Luís Indriunas
Fonte: Legadoindígena na Amazônia: arqueologia aponta manejo ancestral e urbanismo integradoà natureza




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