Em MG, arqueólogos buscam vestígios milenares dos “povos de Luzia”

O arqueólogo Rodrigo de Oliveira na Lapa do Santo MAURÍCIO DE PAIVA

Por: André de Oliveira

Ossadas de 10.000 anos atrás no sítio arqueológico de Lapa do Santo são chave para entender a ocupação do continente americano

Em cima das bancadas estão centenas, talvez milhares, de fragmentos de ossos humanos. São diferentes partes de esqueletos de homens, mulheres e crianças que viveram a cerca de 10.000 anos atrás na região de Lagoa Santa, na área metropolitana de Belo Horizonte (MG). Com mais de uma dezena de sítios arqueológicos, o local é uma das áreas mais ricas das Américas para escavações. Os ossos em cima das bancadas do Laboratório de Estudos Evolutivos e Ecológicos Humanos (LEEEH), da Universidade de São Paulo (USP), esperando para serem montados, colados e catalogados são provenientes da Lapa do Santo, um dos “sítios cemitério” mais ativos da região. Eles são apenas uma pequena parte do que foi escavado em 2016 na última expedição de uma equipe multidisciplinar que vêm trabalhando ali há anos. Um mês de escavação é igual a dois anos no laboratório.

Em 2007, em meio à areia espanada por pincéis, surgiu o crânio de um homem decapitado, desmembrado poucas horas depois da morte. Sobre o rosto, estavam colocadas suas mãos, uma para cima e outra para baixo, como se estivessem tampando os olhos. A descoberta era incomum para a região. A decapitação já era bem conhecida em outro contexto e época: na região do Andes foram encontrados vários esqueletos decapitados de 3.000 anos. Mas nada do gênero, nem tão antigo, havia sido visto em território brasileiro. Esse, contudo, foi só um dos esqueletos encontrados em circunstâncias curiosas na Lapa do Santo. Ao todo, 39 sepultamentos já foram escavados no sítio. Muito deles tendo passado por diferentes tipos de manipulações.

“Há duas formas de sepultamento. Na primeira, o corpo é apenas colocado em uma tumba. Na segunda, depois de enterrado, ele é exumado e manipulado”, conta Rodrigo de Oliveira, um dos coordenadores da expedição que atua ali. Nas escavações da Lapa do Santo, além do crânio decapitado, foram encontrados esqueletos que foram rearranjados de forma lógica. Em alguns casos, ossos foram pintados ou queimados, em outros foram organizados em fardos com dentes ou pedaços de outros indivíduos. E por que isso é tão importante? Porque é uma porta para se tentar compreender melhor quem eram os habitantes da região de Lagoa Santa.

Se na USP é feita a montagem e estudo das ossadas e dentição, processo encabeçado por Oliveira; na Alemanha, André Strauss, também coordenador da Lapa do Santo, tenta extrair o DNA dos esqueletos. “A hipótese é que esses grupos que habitavam a região têm uma origem diferente da dos ameríndios [o índio da América do Sul]”, diz Strauss. Em 1988, o pesquisador Walter Neves estudou a ossada de Luzia, descoberta em 1974. A análise do esqueleto mais antigo já encontrado nas Américas, com cerca de 11.500 anos, permitiu que Neves descobrisse que as características morfológicas de Luzia eram bem diferentes das dos índios brasileiros atuais e com traços semelhantes aos de povos africanos de hoje. A hipótese passou a ser que uma primeira corrente migratória, com estas características, teria cruzado da Ásia para a América, via estreito de Bering, há cerca de 14.000 anos, enquanto uma segunda, com traços mais asiáticos, como os dos ameríndios, há cerca de 12.000.

“A expectativa, agora, é que a leitura do DNA dê uma resposta definitiva sobre essa hipótese”, diz Strauss, que, assim como Oliveira, trabalhava sob orientação de Neves quando o homem decapitado foi encontrado, em 2007. Hoje, o trabalho que desenvolvem desde 2011, quando iniciaram outra expedição no sítio, não se limita à questão do DNA. Os tipos de sepultamento e a análise das ossadas têm sido usados por eles para que se tenha uma compreensão maior do que é designado genericamente como o “povo de Luzia”. “Algum tipo de unidade existia, mas acredito que tratar como apenas um povo ossadas de tempos que variam entre 11.000 e 7.000 é como dizer que os europeus, por exemplo, são todos iguais”, diz Strauss. Para ele, o que as escavações na Lapa do Santo vêm mostrando é que diferentes povos, com diferentes culturas e níveis de sofisticação, habitaram a região. A diferença nos sepultamentos, por exemplo, é um indício disso. Segundo Oliveira, falar em “povos de Luzia”, dessa forma, talvez seja mais apropriado.

Dentista de formação, Oliveira, que entrou na arqueologia quase por acaso, quando fez uma viagem de turismo a outro sítio arqueológico em Minas Gerais e passou a se interessar pelo assunto, dedica-se a entender como os povos da região viviam. Isso quando não está atendendo em seu consultório. “As cáries e os desgastes dos dentes, por exemplo, mostram que tipo de alimento eles consumiam e até onde iam buscar comida”, diz Oliveira. Todos eram caçadores coletores, não tinham agricultura, e comiam pequenos animais e frutas. Anzóis encontrados no sítio também mostram que eles pescavam. Arqueologia é a ciência das hipóteses, e são a partir de evidências como as estudadas por Oliveira que elas são criadas.


“É muito revelador para o leigo as limitações que os arqueólogos têm. É uma tentativa de reconstruir comportamentos, saber o que os caras estavam pensando”, diz Strauss. “Isto posto, acho que as práticas funerárias da Lapa do Santo também são importantes para fazermos um exercício de alteridade, pensando nosso mundo hoje”, completa. Para ele, é comum que as pessoas se atenham ao aspecto macabro dos rituais de enterro dessas sociedades, mas hoje ainda se faz muitas coisas parecidas. “Os monges tibetanos guardam os ossos para depois desenhar neles e simbolicamente os cristãos comem o corpo de cristo. Os exemplos são muitos”. Strauss também cita as condições caóticas dos cemitérios públicos ou os assassinatos violentos em presídios brasileiros no começo deste ano.

Com isso, Strauss argumenta que a arqueologia pode ser um bom instrumento para se pensar a divisão entre “nós” e os “outros”, entre “nós” e os “bárbaros”: os rituais e costumes diferentes da cultura ocidental não deveriam ser vistos como errados ou ultrapassados. As diferenças existem quando se olha para o passado, mas também existem no presente. Na expedição da Lapa do Santo, está se buscando entender melhor de onde vieram os habitantes que chegaram na América há milhares de anos, o que eles faziam, como se alimentavam, que doenças tinham, em suma, quem eram. Mas, ao se mirar esse passado distante, é possível também topar com explicações sobre quem somos e como somos.

Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2017/02/14/politica/1487092363_709976.html (19/02/2017)

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