A grande ameaça ao patrimônio arqueológico brasileiro

A sociedade precisa tomar conhecimento que um passado milenar que estamos começando a descobrir corre risco de ser destruído.


Por: Cláudia R. Plens, Anne Rapp Py-Daniel e Claide de Paula Moraes

Estamos próximos de comemorar 70 anos das primeiras pesquisas arqueológicas ditas científicas (feitas por profissionais formados em arqueologia) no Brasil, mas não temos muito o que comemorar. Em 1948, quando Betty Meggers e seu marido Clifford Evans vieram para a ilha de Marajó escavar sítios arqueológicos para sua pesquisa de doutorado, poucos brasileiros ficaram sabendo dos resultados das pesquisas.

E de lá pra cá, muitos sítios arqueológicos foram descobertos no Brasil, mas como seria de se esperar, o curto tempo de desenvolvimento da pesquisa não é suficiente para termos um panorama aprofundado do passado mais antigo do território brasileiro.

O estágio atual das pesquisas arqueológicas é ainda exploratório. Vastas áreas do território brasileiro ainda não foram sequer prospectadas em busca de vestígios do passado. Em 70 anos não é possível descrever o que demorou vários milênios para se formar.

De fato foi só nos anos 60 que começaram a se formar o(a)s primeiro(a)s arqueólogo(a)s brasileiro(a)s. Só nos anos 80 foi criada a Sociedade de Arqueologia Brasileira. Em outras palavras, ainda é muito cedo para abandonarmos a proteção de nosso patrimônio arqueológico.

Nos últimos anos a arqueologia brasileira vem experimentado um crescimento exponencial. Hoje temos 14 cursos de graduação em arqueologia sendo ministrados em universidades de norte a sul. Quando parecia que estávamos mudando o cenário da discussão e finalmente íamos conseguir incluir mais que umas poucas informações sobre o Egito antigo e a ruínas gregas na discussão do que é arqueologia nos livros didáticos das escolas brasileiras, quando parecia que seria possível falar que temos um “Brasil” muito mais antigo e do qual nós devemos nos orgulhar, nos deparamos com vários projetos propostos por políticos com interesses duvidosos, que vão muito além da vontade da sociedade brasileira e que buscam favorecer a si próprios ou a uma minoria dominante, afrouxando ou excluindo leis de proteção ambiental e do patrimônio histórico brasileiro.

Há pelo menos 15 mil anos AP (antes do presente) grupos de diversas etnias humanos já ocupavam diferentes regiões do território brasileiro. Com o passar do tempo, esses grupos aumentaram e se diversificaram. Sabe-se, por exemplo, que as cavernas de Monte Alegre e de Carajás, no Estado do Pará, já eram locais de ocupação contínua; que no litoral brasileiro sociedades com amplas redes de contato se estabeleceram há milênios antes da chegada dos portugueses.

Como sabemos disso? Por meio de testemunhos arqueológicos que atestam a longevidade da ocupação desse vasto território por grupos diversos, essas populações manejaram seus ambientes ao longo de milênios. Compreender como essas populações viveram, sofreram, reverenciaram seus antepassados e criaram suas culturas é essencial para a preservação do saber, da História do Brasil e do direito à vida dessas populações na atualidade.

O legado deixado pelos primeiros habitantes do território brasileiro é muito mais rico do que a falsa ideia colonialista a respeito do atraso dos nativos americanos. Quando os primeiros espanhóis desceram o rio Amazonas, em 1542, frei Gaspar de Carvajal, o relator da expedição de Francisco de Orellana fez questão de mencionar que as cerâmicas que que eram encontradas em algumas das povoações indígenas da margem do rio Amazonas eram as mais belas do mundo.

Desde a colonização europeia, muitos sítios arqueológicos eram conhecidos pelos portugueses. Os sambaquis, por exemplo, construções monticulares feitas principalmente de conchas de moluscos, presentes ao longo do litoral brasileiro, foram explorados para a construção de imóveis em período colonial. Algumas igrejas antigas ainda possuem em sua argamassa, restos dessas conchas e ossos de animais, como carimbos impressos demonstrando a origem da cal utilizada nas construções.

A partir do século XIX, em diferentes regiões do Brasil, naturalistas e cientistas diversos observaram vestígios da presença humana, alguns claramente relacionados às populações indígenas da época e, outros, muito mais antigos. No século XX, diferentes sítios arqueológicos, com diferentes datações, foram estudados por arqueólogos acadêmicos aumentando a compreensão da variabilidade do modo de vida das populações indígenas em período pré-colonial. Além disso, o estudo arqueológico realizado sobre vestígios recentes permitiu acesso a informações preciosas sobre as populações africanas trazidas a força para o Brasil, informações estas não descritas nos textos dos séculos XVI a XIX.

A importância desses sítios arqueológicos para a compreensão da ocupação territorial brasileira e das populações indígenas foi reconhecida pelo Estado ainda em 1961, com a Lei 3.924, que protege todos os sítios e vestígios arqueológicos, tornando um crime a destruição ou comercialização de objetos antigos. A Constituição de 1988, reforçou a necessidade da proteção do patrimônio arqueológico. Além disso, ela reconheceu o direito à diversidade cultural e às diferentes Histórias da população brasileira. A Constituição foi inovadora nesse sentido, pois ela apontava para a necessidade de incluir as Histórias das populações indígenas e afrodescendentes para explicar a formação da sociedade brasileira.

A legislação pertinente à Arqueologia está atrelada às do Meio Ambiente, pois, os sítios arqueológicos estão inseridos dentro de contextos ambientais. A destruição de um ambiente, além de suas múltiplas consequências para as populações vivas de seu entorno, a fauna e a flora, afeta diretamente os remanescentes arqueológicos. Um empreendimento que promoverá alteração de uma área, leva à destruição parcial ou total de um ambiente, o qual não poderá nunca mais ser recuperado. As perdas pela destruição ambiental são imensas e afetam diretamente a preservação de todas as formas de vidas, inclusive a humana, e a História para todas as futuras gerações.

A partir do reconhecimento da necessidade de conhecer e preservar o patrimônio arqueológico, a arqueologia brasileira cresceu exponencialmente, por exemplo, novos cursos de graduação foram abertos com o objetivo de atender às demandas legais e uma grande quantidade de arqueólogos profissionais vem sendo formada. Esse movimento causou um enorme impacto na disciplina, mas principalmente na avaliação da dimensão da ocupação indígena em território nacional.

A legislação brasileira no que concerne aos Estudos de Impacto Ambiental, e assim a arqueologia, propõe medidas de preservação comparáveis aos países do primeiro mundo. Entretanto, o que é extremamente preocupante, é que a total efetivação das leis ainda não se fez, mas mesmo assim já existem novas propostas de lei, voltadas a destruir o que ainda está em processo de implantação.

Pode-se dizer que o maior problema para o total cumprimento das normas vigentes é a pouca fiscalização em todas as etapas, desde a contratação da equipe especializada para fazer o levantamento até a produção de relatórios e retorno ao público. O órgão responsável por esse controle é o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que apesar do aumento significativo do quadro de servidores nesses últimos anos, ainda está com efetivo inferior ao necessário e, para piorar a situação, praticamente todos os cargos criados são apenas temporários.

Outro problema enfrentado pelos arqueólogos e órgãos de controle é a falta de compreensão e diálogo, pois as medidas de proteção e preservação são muitas vezes vistas como empecilhos ao “progresso” e ao setor econômico. Não há uma discussão sobre que progresso é esse ou para quem ele se destina, nem quais serão as vantagens econômicas e muito menos a importância da História ou do Ambiente para a constituição do país de maneira justa.

Dado que se tratam de estudos de grande importância para o coletivo, tanto da atualidade quanto para as gerações futuras, esses Estudos de Impacto Ambiental, demandam pesquisas com profissionais de diferentes formações, tempo e investimento de dinheiro. Infelizmente a única prerrogativa levada em consideração nessas novas propostas de lei é que quanto mais rápida a execução das obras, mais rápido os lucros de investimentos terão retorno.

Mesmo com todos esses problemas, os trabalhos no âmbito dos projetos de levantamento e resgate arqueológicos permitiram o reconhecimento de centenas de sítios arqueológicos, cadastrados no IPHAN, aumentando nossa compreensão sobre as populações pré-coloniais, seus modos de vida e manejo do meio ambiente.

Muitos desses sítios arqueológicos ganharam repercussão na mídia e, inclusive, por agências internacionais. É o caso, dos sítios Gruta do Gavião – Carajás/PA (área de mineração), Sítio Lítico Morumbi, São Paulo/SP (área de construção civil), Sítio Portocel – Aracruz/ES (área de silvicultura), Geoglifos - Acre (linha de transmissão), Sítio Pinheiros II – São Paulo/SP (área de construção civil), Sítio arqueológico Caetetuba – São Manuel/SP (sítio de 12 mil anos - área de expansão de lavoura), Porto de Santos – SP (dragagem do leito do porto), Arraial de São Francisco - MG (área de mineração).

O caso mais proeminente internacionalmente é o Cais do Valongo, Rio de Janeiro/RJ. Descoberto a partir da revitalização do Centro do Rio de Janeiro para as obras das Olimpíadas, em uma área onde se pensava já se conhecer todo o desenrolar da história. O sítio revelou o tráfego ilegal de escravos africanos no local, e foi para a lista indicativa da UNESCO para se tornar Patrimônio da Humanidade.

Todavia o avanço que se teve em relação à proteção do meio ambiente por meio da legislação, em particular a arqueologia, que se fortaleceu nas últimas décadas com as resoluções CONAMA 01/86 E 237/97, que prevê que empreendimentos com impactos socioambientais importantes precisem passar por um sistema de licenciamento com três fases (permitindo uma avaliação contínua do processo): a prévia, de instalação e de operação, sofre agora com iminente ameaça.

A bancada ruralista que vem ganhando força no senado nos últimos anos, vem pressionado por mudanças que visam afrouxamento nos seus deveres para com o meio ambiente. A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 65/2012 prevê que a mera apresentação dos Estudos de Impacto Ambiental (EIA-Rima) sobre um empreendimento, sem apresentação de resultados, possa levar à sua autorização de implantação não podendo sofrer qualquer embargo posterior.

O senador Romero Jucá (PMDB-RR), propôs o Projeto de Lei do Senado (PLS) 654/2015 bastante controverso. Nessa proposta ele postula um curto prazo (cerca de no máximo oito meses) para a execução total do licenciamento de grandes obras que sejam consideradas estratégicas pelo governo. Para cumprimento legal à risca do projeto de Lei, são eliminadas as fases essenciais do licenciamento como as licenças prévia, de instalação e de operação. Se o tempo de pesquisa ultrapassar o estipulado, automaticamente o empreendimento passa a ser liberado e o governo pode executar a obra. Vale lembrar que a aprovação desse projeto de Lei pelo Senado ocorreu durante a votação sobre o impeachment de Dilma Rousseff. Este projeto é uma evidência do grande paradoxo enfrentado pela população brasileira na atualidade, pois pouco tempo após a criação de medidas e leis voltadas para a proteção do seu direito à História, à Inclusão Social e ao Meio Ambiente, novas leis são propostas para proteger o interesse econômico de alguns e, quando necessário, se sobrepor aos direitos da sociedade como um todo. Nenhum grande projeto pode ser pensado, projetado e executado em menos de 8 meses, como este tempo poderia ser suficiente para avaliar os prejuízos que estes empreendimentos poderiam causar ao meio ambiente ou ao patrimônio histórico?

Nesse momento, o Projeto de Lei (PL) 3.729/2004, de autoria de Luciano Zica (PT/SP), vem causando grande preocupação, ele prevê a dispensa do licenciamento de acordo com atividades econômicas. Por exemplo, fazendas de plantio de eucalipto, obras de captação de água ou ampliações de rodovias não teriam necessidade de cumprimento do licenciamento, apesar do grande impacto causado à superfície e subsuperfície. O projeto vai mais longe, e prevê um licenciamento auto-declaratório, efetuado por meio de cadastro eletrônico, sem autenticação por parte de quaisquer órgãos ambientais. Nessa proposta não há espaço para diálogos e intervenções externas e comunidades indígenas, quilombolas ou tradicionais não teriam poder de intervenção no licenciamento, ficando a mercê de interesses de particulares.

O interesse pelo desmantelamento da legislação contra o licenciamento ambiental é tão grande que mais ações também estão sendo articuladas. A Associação Brasileira de Entidades Estaduais de Meio Ambiente (Abema) em tramitação no Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) e o substitutivo do Projeto de Lei mencionado no próximo parágrafo preveem a criação de mais três novas modalidades de licenciamento Conama 01/86 e 237/97, todas com o objetivo de simplificar os processos, essas são: o licenciamento “unificado”; por “adesão e compromisso”; e por “registro”.

Do ponto de vista do Meio Ambiente e mais especificamente da Arqueologia, um novo golpe ainda mais duro ameaça contundentemente os patrimônios ambiental e cultural, por meio de mais um projeto de Lei, e esse pode ser fatal, o substitutivo ao Projeto de lei n°. 3.729/2004, do relator Deputado Mauro Pereira, que versa sobre procedimentos relacionados ao licenciamento ambiental, inclusive, o arqueológico. Neste substitutivo, o deputado prevê a revogação as Resoluções 01/86 e 237/97 do Conama, delegando aos Estados e municípios a definição de quais empreendimentos estarão sujeitos ao licenciamento ambiental, de acordo com a natureza, porte e potencial poluidor do empreendimento. Os golpes sobre todo o licenciamento ambiental são vários e de várias naturezas, dentre os quais destacam-se os artigos 02 e 28, que exclui o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional das primeiras etapas do processo de licenciamento, deixando a leigos a responsabilidade de identificar vestígios arqueológicos.

É importante ressaltar que arqueólogos possuem uma longa formação acadêmica universitária, onde o profissional aprende a lidar com diversas culturas materiais e contextos. Em muitos casos, onde não há referência escrita para aspectos históricos da sociedade, a cultura material e os sítios arqueológicos podem ser estudados para termos informações sobre os comportamentos de vida de grupos pretéritos. Trata-se de um campo de saber complexo. O reconhecimento do patrimônio arqueológico não pode ser executado por outros profissionais.

Ao fim e ao cabo, o projeto de lei que deveria propor uma maior normatização, ao revogar as Resoluções 01/86 e 237/97 do Conama, afeta as normas estaduais e restringe as manifestações de órgãos interessados no licenciamento, como órgãos ligados às unidades de conservação (ICMBio), indígenas (Funai), quilombolas (Fundação Cultural Palmares) e, históricas (IPHAN).

A comunidade arqueológica brasileira vem se manifestando contrária a esta proposta. A Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB) reconhece que os mecanismos de licenciamento podem e devem ser aprimorados, pore%u001m, as medidas contidas no texto Substitutivo do PL 3.729/2004 não contribuem para tal aprimoramento. Ao contra%u001rio, de acordo com seu presidente, Prof. Dr. Flávio Calippo, elas fragilizam o processo de licenciamento, colocando em risco a protecão e a preservação do patrimônio arqueológico brasileiro, bem único e não renovável, de propriedade e interesse de toda a sociedade.

Cabe enfatizar que as políticas públicas devem beneficiar a sociedade como um todo e não os interesses privados em detrimento do coletivo. Assim sendo, ao contrário do que está sendo proposto pelo PL 3.729/2004, o licenciamento ambiental arqueológico deveria tornar-se mais rigoroso, pois sítios arqueológicos são insubstituíveis: uma vez destruídos, não podem ser recuperados. Se o projeto de lei acima referido for aprovado, certamente levará a destruição de grande escala do patrimônio arqueológico de modo irreversível. A sociedade precisa tomar conhecimento que um passado milenar que estamos começando a descobrir corre risco de ser destruído antes que qualquer pesquisa seja realizada. Como disse Emília Viotte Costa "Um povo sem memória é um povo sem história. E um povo sem história está fadado a cometer, no presente e no futuro, os mesmos erros do passado."; ou o que é pior ainda, não aproveitar os exemplos corretos que seriam úteis no presente e no futuro. Estima-se que 10 milhões de pessoas viveram na Amazônia antes da chegada dos europeus. Estas 10 milhões de pessoas foram capazes de conservar a Amazônia como conhecemos, hoje nosso modo de vida parece não ser compatível com a floresta. Temos muito o que aprender com o passado...

* parte das informações foram tiradas da nota da Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB). Para maiores informações: http://www.sabnet.com.br/download/download?ID_DOWNLOAD=439

Cláudia R. Plens - Departamento de História da EFCLH/ Laboratório de Estudos Arqueológicos (LEA/UNIFESP) e Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF/UNIFESP)

Anne Rapp Py-Daniel - Coordenadora do Curso de Arqueologia da Universidade Federal do Oeste do Pará

Claide de Paula Moraes - Professor no Programa de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal do Oeste do Pará

Fonte: http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/A-grande-ameaca-ao-patrimonio-arqueologico-brasileiro/4/38223 (05/06/2017)

Comentários

  1. Depois do regime militar através do programa PRONAPA nada mais foi realizado com vulto e de maneira sistêmica no território brasileiro.

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