Em busca das cidades perdidas da Amazônia

Antes da chegada dos europeus, grupos indígenas construíram cidades, no meio da mata, que rivalizavam com as da Europa. Uma nova pesquisa diz que a floresta, longe de ser uma ocorrência natural, foi construída pelo trabalho desses povos

Por: RAFAEL CISCATI

Um nova trabalho diz que, antes da chegada dos europeus, as populações indígenas da Amazônia interferiram na formação da floresta (Foto: Getty Images)

Você e eu aprendemos que a Amazônia é uma vastidão verde criada pela natureza. Uma floresta que nasceu em solo pobre, inadequado para a agricultura. Aprendemos também que, em pontos remotos – que correspondem à maior parte da floresta – a mata permaneceu imperturbada por séculos, a salvo das investidas humanas. Quando o professor Charles Clement chegou à Amazônia, em 1976, era essa a ideia em voga nos círculos acadêmicos. Clement é um etnobotânico que trabalha no Instituto Nacional de Pesquisas Amazônicas (Inpa). Passou a maior parte da vida na floresta, observando as alterações que populações indígenas fizeram em espécies de árvores frutíferas: “A mudança na pupunha é gigantesca”, diz Clement, um senhor de fala calma e carregado sotaque americano, apesar dos quase 40 anos de Brasil. Essas mudanças foram feitas de maneira prosaica. No passado, ao caminhar por trilhas na floresta, os índios abriam a mata ao redor das árvores frutíferas. Isso as ajudava a crescer. Séculos de colaboração causaram grandes mudanças. “A pupunha silvestre tem 2 g. Mas você encontra pupunhas na floresta com até 200g”, afirma o professor.

Clement e seus alunos têm a mania de observar a distribuição das árvores na floresta. Descobriram que é grande a quantidade de plantas úteis para a sobrevivência humana nas imediações dos rios – um levantamento feito pela equipe do professor atesta que elas correspondem a 40% das árvores a cada hectare nas margens dos cursos d’água. Essa concentração vai caindo conforme o aventureiro avança na mata. Mesmo assim, 40km floresta adentro, continua alta. Clement acha que essa distribuição, muito conveniente para os humanos, não é coincidência ou sorte. Ao contrário, ele e seus colegas defendem que aquelas árvores estão ali porque índios que precisavam delas para sobreviver as ajudaram a crescer. Passados milhares de anos, esses esforços mudaram a floresta toda. Clement diz que aquilo que eu e você aprendemos na escola está errado: longe de ser uma imensidão verde feita pela natureza, a Amazônia é, parcialmente, uma invenção dos humanos que nela viveram. E que a mata, mesmo nos seus pontos mais isolados, foi remexida por mãos humanas. A teoria de Clement é polêmica. Ela pode nos ajudar a entender a floresta do passado, e pode mudar a maneira como pensamos a floresta no presente.

Já há décadas, a presença dos humanos na Amazônia pré-colombiana alimenta um animado debate. Um dos primeiros cientistas a defender que a floresta foi influenciada pela ação das pessoas foi o geógrafo americano William Denevan . Em 1992, Dennevan publicou o artigo The Pristine Myth: The Landscape of the Americas in 1492 (algo como O mito da terra primitiva: a paisagem das americas em 1492). No texto, Dennevan reúne evidências que circulavam desde a metade do século para afirmar que, quando os europeus chegaram à América, os habitantes do continente já haviam modificado a natureza em todo o território. O trabalho chamou a atenção da imprensa da época e causou burburinho entre os acadêmicos.

Em julho deste ano, Denevan, Clement e o arqueólogo Eduardo Góes, da Universidade de São Paulo, em companhia de outros colegas arqueólogos e geógrafos, voltaram à carga. Publicaram um artigo em que resumiram suas descobertas, fruto de anos de pesquisa. No trabalho, afirmam que a população amazônica à época da conquista era numerosa. Somava 8 milhões de pessoas. Talvez 10. Elas viviam em cidades sofisticadas, que rivalizavam em tamanho com Lisboa ou Madri – dois dos lugares mais desenvolvidos da Terra no período. Cultivavam alimentos, construíam casas, pontes, trilhas e diques. Criavam trabalhos em cerâmica que se espalharam pela América do Sul, influenciando as populações nos Andes. Com a chegada dos europeus, a maioria morreu, vítima de doenças então desconhecidas. Clement, Góes e companhia se dedicam, agora, a reencontrar os poucos vestígios deixados por esses grupos, e a descobrir qual o alcance das mudanças que eles causaram.

Por muito tempo, pensou-se que a vastidão amazônica fosse produto da natureza. Clement e seus colegas defendem que o homem teve papel importante na distribuição das árvores na floresta (Foto: Lubasi/Wikimedia)

A maioria dos agrupamentos amazônicos se concentrou nas margens dos grandes rios, com algumas aldeias menores nas regiões de interflúvio. Seu tamanho variava – as aldeias entre os rios podiam reunir algo em torno de mil pessoas. Havia conjuntos de aldeias, próximas da água, com populações de até 50 mil índios. Para fazer essa estimativa populacional, os pesquisadores se apoiaram na extensão da área ocupada por um tipo de solo conhecido como "terra preta de índio". Trata-se de um solo artificial, resultado da deposição de cinzas e resíduos criados por humanos, como restos de cerâmica e carcaças de animais. Os pesquisadores calculam que a "terra preta" seja encontrada em pelo menos 3% da Amazônia. A área pode ser maior.

As modificações causadas por essas populações foram se acumulando com o tempo. As plantações dos índios mudaram os tipos de solo e suas intervenções na mata interferiram na distribuição das árvores na floresta. O processo foi demorado. Os primeiros humanos chegaram à Amazônia há cerca de 12 mil anos. Esse número é o mais difundido, mas é alvo de discussão. Alguns registros sustentam que a presença humana é mais antiga: “Podemos falar, com segurança, em 20 mil anos”, diz Clement. Os muitos grupos que surgiam firmavam relações sociais – e talvez comerciais – uns com os outros. No final do século XV, os incas estabeleceram um posto militar avançado à oeste da Amazônia. Com isso, provavelmente, pretendiam se proteger de tribos hostis vindas da floresta, ou comercializar com elas. Essas redes sociais deixaram marcas na mata, na forma de construções artificiais: trilhas, pontes, diques. Por causa delas, mesmo as áreas em que não havia cidades foram influenciadas pela presença dos índios.

Toda essa movimentação foi registrada pelos europeus. As cidades indígenas foram avistadas por conquistadores que navegaram naquela região no século XVI. O primeiro europeu a descer o rio Amazonas, a partir do Peru, foi o espanhol Francisco de Orellana. Orellana ajudara, anos antes, Francisco Pizarro a subjugar o império Inca. Entre 1541 e 1542, desceu o Amazonas desde o rio Orinoco, nos Andes, até sua foz, no oceano Atlântico. Os relatos de suas viagens , e as histórias deixadas por colonizadores que vieram depois, alimentaram a imaginação dos europeus por gerações. Na região próxima de onde hoje fica a cidade de Santarém, esses conquistadores descreveram uma comunidade que se espraiava por 5km ao longo do rio Tapajós. Mata adentro, já longe do rio, aldeias menores se equilibravam no topo de pequenos montes. “Esses montes de que os relatos falam ficam à 10km de distância do Tapajós”, diz Clement. Se estavam visíveis aos europeus era porque a mata densa, naquele ponto da floresta, fora desbastada. No século XVI, a Santarém indígena era tão grande quanto as cidades europeias. Era formada por um núcleo central e por aldeias menores, que compunham uma espécie de região metropolitana. “O sítio de Santarém abrigou a maior cidade da Amazônia”, diz Clement. “Estamos falando de algo entre 25 mil e 40 mil pessoas em uma aldeia”.

Os pontos negros do mapa identificam sítios arqueológicos espalhados pela mata. A maioria está concentrada nas margens dos grandes rios. Há sítios embrenhados na floresta (Foto: Eduardo Neves)

Os relatos de uma Amazônia ocupada caíram em descrédito com o passar dos anos. A região atraiu interesse acadêmico somente em meados do século XVIII, quando a maior parte dessa população já desaparecera. Estima-se que entre 1600 e 1750, 95% dos índios morreram. A maioria, vítima de doenças como malária. Suas casas eram feitas de material degradável. Suas armas e ferramentas fabricadas com pedra e madeira. Depois de sua morte, a floresta retomou o território com vigor, e escondeu os resquícios das antigas ocupações. A partir do século XVIII, cortes europeias patrocinaram expedições de descoberta à floresta. Para cá, vieram botânicos e naturalistas. Encontraram mata fechada. “Seus relatos falam de poucos índios e de florestas magníficas”, diz Clement.

O mito da Amazônia intocada ainda se intensificou durante o século XX. Na década de 1950, a apoiadora mais feroz dessa tese foi a americana Betty Meggers, do Smithsonian – uma das mais poderosas instituições do mundo quando o assunto é arqueologia. Meggers fez expedições ao Brasil. Analisou as condições do solo amazônico e decretou que ele era ruim – e que, por isso, não poderia ser usado para o cultivo de alimentos. Não em quantidade capaz de sustentar grandes populações por grande espaço de tempo.

Essa visão foi questionada em 1980, graças ao trabalho de arqueólogos como Anna Roosevelt. Roosevelt encontrou, na ilha de Marajó, registros de uma cultura que perdurou por mais de 1000 anos. Uma ocupação grande, duradoura e bem-sucedida. Descobertas semelhantes foram feitas em outros pontos da floresta. Hoje, a preocupação dos estudiosos não é mais saber se houve ou não grandes populações vivendo na mata. Isso eles já têm por certo. O que querem é descobrir se essas populações ficaram restritas a alguns grandes centros – como Santarém – ou se elas se espalharam pelo território, influenciando o desenvolvimento da floresta inteira.

Clement e seus colaboradores estão nesse segundo grupo. Do lado oposto, estão pessoas como Mark Bush. Britânico, Bush é professor de ciências biológicas do Instituto de Tecnologia da Flórida, nos Estados Unidos. Sua especialidade é a paleoecologia – Bush coleta amostras de água de lagos e rios. Caso encontre pólen nessas amostras, consegue descobrir informações valiosas sobre o passado de uma floresta. Entre elas, se havia ou não agrupamentos humanos vivendo em dada região.

Bush fez isso em 10 lagos na Amazônia brasileira, peruana e equatoriana. Encontrou sinais de presença humana contínua somente em um. Concluiu daí que, sim, havia grandes grupos vivendo na Amazônia. Mas eles não se espalharam pela mata, que foi poupada da interferência humana. “Eu concordo que havia grandes e duradouras ocupações na Amazônia – e tenho alguma cartas bem mal-educadas da Betty Meggers, que recebi por causa desse posicionamento”, diz Bush. “A questão é entender o que acontece se você caminhar algumas horas para longe dos grandes rios.” Bush diz que, na vasta região entre os rios, há pouco ou nenhum vestígio de intervenção humana. Ali, Clement encontra Terra Preta e espécies de árvores que cresceram com a ajuda dos índios. Bush encontra mata fechada.

Essa nova discussão desperta posicionamentos apaixonados. Em parte porque ela aborda questões atuais: faz pensar sobre como a Amazônia foi ocupada no passado, e como deve ser ocupada no futuro. Faz pensar também sobre a capacidade da floresta de absorver impactos criados por humanos. Estudiosos como Clement e Góes afirmam que as interferências dos índios na criação da floresta mostram que é possível viver de maneira equilibrada com a mata. Os modos de vida das populações tradicionais – índios e seringueiros, por exemplos – não agridem a floresta. “O que esse trabalho nos ajuda a pensar é que existem alguns tipos de ocupação, que não são novas, e que geram impacto positivo. Que podem aumentar a diversidade”, diz Eduardo Góes, da USP. “A gente não pode pensar na Amazônia apenas como uma floresta natural. É uma história com um componente cultural”.

Fonte: http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/blog-do-planeta/amazonia/noticia/2015/09/em-busca-das-cidades-perdidas-da-amazonia.html (11/09/2015)

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