Entrevista - Niéde Guidon: A arqueologia do descaso
Niéde Guidon é formada em História Natural na USP, com doutorado em Arqueologia pela Sorbonne
Jornal do Brasil
CELINA CÔRTES, celina.cortes@jb.com.br
Niéde Guidon é uma lenda viva. Graças à sua obstinação e perseverança, foi criado em 1979 o Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, maior concentração de vestígios ancestrais do mundo, alçado a Patrimônio da Humanidade em 1991. Aos 85 anos, afetada por uma Chikungunya que a forçou a usar uma bengala, essa paulistana, filha de pai francês e mãe brasileira, formada em História Natural na USP, com doutorado em Arqueologia pela Sorbonne — quando se exilou na França para fugir da ditadura militar —, veio ao Rio esta semana receber uma homenagem no Museu do Amanhã. O JB convidou outra lenda vida da paleontologia nacional, o diretor do Museu Nacional, Alexander Kellner, 55 anos, para entrevistá-la. Maior arqueóloga do país — e uma das maiores do mundo —, Niéde revela que foi inaugurado em 2015 um aeroporto em São Raimundo Nonato (PI) para atender a demanda a esse tipo de turismo, com potencial para atrair, por ano, cinco milhões de pessoas. Faltaram, porém, cem metros de pista para receber os grandes aviões e um posto de combustível que permitir seu retorno — e o aeroporto está com os voos suspensos desde o ano passado. Kellner tenta estimulá-la a prosseguir sua batalha, sobretudo burocrática, para enfrentar os graves problemas criados pela falta de recursos, e ela responde, desanimada: “Isso é para você, que ainda é jovem. Já lutei muito, não tenho mais tempo para esperar”.
Alexander Kellner: Qual é a principal contribuição científica do Parque da Serra da Capivara?
Niéde Guidon: Primeiro, a questão sobre o povoamento da América. Inclusive, o sítio mais antigo das Américas está nos Estados Unidos, com 140 mil anos. Nós só temos 100 mil. Essa foi uma contribuição essencial. Dizia-se que o homem americano tinha baixa capacidade tecnológica e artística, contudo, temos peças no museu idênticas às encontradas na Europa, e também sobre a evolução da região, que já foi Mata Atlântica e Floresta Amazônica. Sobre as espécies, houve descobertas fantásticas, junto aos pesquisadores da Fiocruz. Pensava-se que os parasitas tinham chegado ao Brasil com os escravos. Não, eles chegaram com o homem americano, porque foram encontrados em fezes tratadas de 8.500 anos. Temos pinturas datadas de 28 mil anos e datações de 110 mil anos de fogueiras, um material de pedra lascada. Quer dizer, sem dúvida o homem estava lá, no mínimo, há 110 mil anos.
O parque mudou o perfil econômico da região?
A Fundação Museu do Homem Americano, criada para cuidar do parque, é a maior empregadora da região, apesar de não funcionar de forma ideal. Temos o Museu da Natureza, a ser inaugurado em 8 de dezembro, temos museus únicos no Brasil. Além dos funcionários da fundação, há os hotéis, restaurantes, guias turísticos, o que gera um desenvolvimento local. Houve um aumento de visitantes brasileiros e uma redução nos estrangeiros. Antes vinham muitas pessoas da Alemanha, da França, do Japão, o que diminuiu bastante. Já fizemos exposições em Paris, em Bonn e em Amsterdam. O parque é mais conhecido no exterior do que aqui. Na edição de janeiro da revista “Mammoth Trumpet”, a capa trazia uma foto de um sítio da Serra da Capivara com o título: “A maior galeria de arte das Américas”. Já imaginou o que os governos do Brasil e do Piauí fariam se tivessem recebendo milhares de turistas? Agora, acho que temos de voltar à monarquia. D. João foi lá fotografar e perguntei: “Se conseguirmos declarar o Principado Livre da Serra da Capivara, aceita ser nosso rei?”. “Aceito!”, ele respondeu com entusiasmo.
Qual é a verba do parque?
Verba fixa não temos. Quando o parque foi declarado Patrimônio da Humanidade, o governo brasileiro pediu à França para me emprestar recursos para que eu pudesse fazer o projeto. Conheci vários patrimônios da humanidade no mundo. Fomos a Washington e convidamos o Enrique Iglesias, então presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento, para conhecer o parque, em 1998. Ele achou muito bonito, embora ainda não houvesse nenhuma estrutura. Um técnico ficou lá mais de um mês, fez um relatório dizendo que a região nunca teria nenhum futuro econômico baseado em agricultura e criação, porque o solo era muito salgado, com areia, pedra, e havia a seca do Nordeste, mas existia um enorme potencial turístico. Contratamos então uma firma suíça, e foi ela quem fez o projeto de como desenvolver o turismo dentro das características de patrimônio da humanidade. Daí começamos. O Iglesias ficou tão impressionado que o Banco Interamericano fez uma doação de US$ 1,6 milhão, com os quais montamos a infraestrutura do parque, de 260 km². Das 24 guaritas de proteção, a cada 10km, uma era para evitar incêndios e caça, todas com funcionários dia e noite, e rádios. O parque hoje tem 400km de estradas, porque temos mais de mil sítios arqueológicos, e é preciso evitar problemas com cupim, com abelhas que fazem seus casulos em cima das pinturas, blocos que caem e escorrem água em cima das pinturas. Tivemos de reduzir para quatro o número de guaritas, agora destinadas só ao turismo.
Como estão os problemas vinculados à caça e aos incêndios?
Houve muitas dificuldades com a caça, porque os guardas do parque eram terceirizados. O governo pagava à empresa, que não repassava o dinheiro. Os guardas chegavam a ficar cinco meses sem receber salário, então não tinham interesse em trabalhar. Agora são guarda-parques do ICMBio, todos funcionários, mas são em número reduzido. Houve dois incêndios e o último, há cinco meses, era bem grande. Não temos bombeiros. Conseguimos um carro-pipa, o estado mandou bombeiros de Teresina, um helicóptero e um avião para ajudar, e conseguimos apagar o fogo. O turismo também está caindo. Até 2016, recebemos 25 mil visitantes. Em 2017, foram só 16 mil.
Qual o potencial de visitação?
Os patrimônios da humanidade recebem no mundo cerca de cinco milhões de turistas/ano. Era o que se esperava no parque. Infelizmente o acesso era difícil, fica a 600km de Teresina. Foi criado o Aeroporto Internacional São Raimundo Nonato. A verba saiu em 1997, e o aeroporto só foi inaugurado em outubro de 2015. Como toda obra pública, houve desvio de recursos. Fizeram um aeroporto internacional com 100m de pista a menos. A Emirates queria fazer voos da Europa para a Serra da Capivara, só que não podia descer avião grande. E até hoje não temos voos porque não fizeram um posto de combustível. Se um avião desce lá, não pode mais sair.
Quantos trabalham no parque?
Estamos com cerca de 180 funcionários, já foram 270. Antes, toda a infraestrutura e proteção do parque vinham da Petrobras. Além dela, tínhamos o Fundo da Compensação Ambiental, vindo das contribuições das empresas que perturbam o Meio Ambiente. Quando Lula assumiu seu primeiro mandato, foi criado em Brasília o Fundo da Compensação Ambiental, e esses recursos passaram a ficar na mão do governo. Sabemos que o dinheiro que vai para Brasília acaba na Suíça. A Petrobras faliu e parou de colaborar. Demiti muitos funcionários em 2015, ficamos apenas com quatro guaritas, tivemos inclusive que vender carros para poder indenizar as pessoas.
Não foi possível acionar os organismos internacionais?
Organismo internacional não financia pagamento de funcionários. A missão permanente francesa, criada em 1975, da qual eu participava todo ano com meus alunos, continua financiando as pesquisas, e um colega meu, professor em Paris, tem vindo todos os anos com seus alunos. A França é nossa maior financiadora. A Itália assinou um contrato com o governo do Piauí, construíram cinco escolas no entorno do parque, para capacitar analfabetos a trabalhar com turismo. Os professores eram da região, formados por profissionais de São Paulo. As crianças tinham aula de inglês e francês. A estrutura funcionou cinco anos, depois, seria mantida pelo governo do Piauí, que não mandou nada. O Itaú fez uma doação, e as escolas funcionaram mais cinco anos. Elas estão fechadas há mais de cinco anos.
E o governo do Piauí, o que diz?
Há dois anos o governo do Piauí se juntou ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e ao ICMBio na manutenção do parque, com R$ 500 mil por ano de cada um deles. O governo do Piauí entra com R$ 300 mil, o que seria suficiente para manter o parque. Só que o governo as vezes atrasa, como aconteceu agora, quando o dinheiro de dezembro só chegou em maio. Isso porque pedi à vice-governadora, que se virou para enviar os recursos.
Se você oferece algo de diferente, com um mínimo de segurança, acho que explode...
Quando o parque foi declarado Patrimônio da Humanidade e a Emirates queria fazer voos diretos, houve uma firma suíça que se interessou em construir lá um hotel cinco estrelas, como ocorre em todos os patrimônios, inclusive na África. No Piauí, os hotéis são péssimos. Mas quando os suíços viram que não tinha aeroporto, desistiram. É outra coisa que expliquei em Brasília. O público que vai a um patrimônio da humanidade tem mais de 50 anos, de classe A e AA, já com dificuldade de locomoção. Sabe o que o cara de Brasília me falou? Classe AA, a senhora não gosta de pobre?
Esta queda no movimento tem trazido problemas?
São Raimundo Nonato era uma cidade tranquila, minhas jovens alunas francesas passavam uma semana na caatinga com os guias para fazer pesquisas e nunca houve uma falta de respeito. Eu vinha da França com todo o dinheiro para dois meses de pesquisa dentro de uma bolsa, pagava as pessoas e nunca houve roubo. Só esse mês, já teve três assassinatos, pessoas de lá mesmo. E ninguém vai para a cadeia. Outro dia, uma professora ia dar aula de moto, três rapazes derrubaram a moto e a estupraram. Estive na França em abril, e as manchetes mostravam toda essa violência. O “Le Monde” trazia na primeira página: “O Brasil já foi campeão mundial de futebol, agora é campeão mundial de corrupção”. Quando disse à minha empregada, quase analfabeta, que vinha ao Rio de Janeiro, ela me perguntou: “O que a senhora vai fazer nessa cidade cheia de tiros, matando todo mundo?”. Eu me lembro quando vinha ao Rio, nos anos 50, saía de noite sozinha, andava por toda a parte, quantas vezes fui dançar na Rocinha? O que virou a Cidade Maravilhosa?
A senhora já se sentiu ameaçada na sua integridade física?
Quando eu vim da França para cá e comecei a trabalhar no parque para proteger o patrimônio da humanidade, pessoas da região quebravam e queimavam o calcário dos sítios para fazer cal e só recebiam comida dos mandantes, era trabalho escravo. Uma dessas pessoas me avisou que um político ia contratar alguém para me matar. Fui à casa dele e disse que tinha sabido que ele estava contratando alguém para me matar: “Você vai poder me matar, mas vou te dizer uma coisa, tenho amigos no Rio e já falei com eles. Se eu morrer, vocês pegam o pessoal do Rio para matar fulano e toda a sua família”. Desistiu.
Fonte: http://www.jb.com.br/rio/noticias/2018/06/09/entrevista-niede-guidon-a-arqueologia-do-descaso/ (09/06/2018)
Jornal do Brasil
CELINA CÔRTES, celina.cortes@jb.com.br
Niéde Guidon é uma lenda viva. Graças à sua obstinação e perseverança, foi criado em 1979 o Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, maior concentração de vestígios ancestrais do mundo, alçado a Patrimônio da Humanidade em 1991. Aos 85 anos, afetada por uma Chikungunya que a forçou a usar uma bengala, essa paulistana, filha de pai francês e mãe brasileira, formada em História Natural na USP, com doutorado em Arqueologia pela Sorbonne — quando se exilou na França para fugir da ditadura militar —, veio ao Rio esta semana receber uma homenagem no Museu do Amanhã. O JB convidou outra lenda vida da paleontologia nacional, o diretor do Museu Nacional, Alexander Kellner, 55 anos, para entrevistá-la. Maior arqueóloga do país — e uma das maiores do mundo —, Niéde revela que foi inaugurado em 2015 um aeroporto em São Raimundo Nonato (PI) para atender a demanda a esse tipo de turismo, com potencial para atrair, por ano, cinco milhões de pessoas. Faltaram, porém, cem metros de pista para receber os grandes aviões e um posto de combustível que permitir seu retorno — e o aeroporto está com os voos suspensos desde o ano passado. Kellner tenta estimulá-la a prosseguir sua batalha, sobretudo burocrática, para enfrentar os graves problemas criados pela falta de recursos, e ela responde, desanimada: “Isso é para você, que ainda é jovem. Já lutei muito, não tenho mais tempo para esperar”.
Alexander Kellner: Qual é a principal contribuição científica do Parque da Serra da Capivara?
Niéde Guidon: Primeiro, a questão sobre o povoamento da América. Inclusive, o sítio mais antigo das Américas está nos Estados Unidos, com 140 mil anos. Nós só temos 100 mil. Essa foi uma contribuição essencial. Dizia-se que o homem americano tinha baixa capacidade tecnológica e artística, contudo, temos peças no museu idênticas às encontradas na Europa, e também sobre a evolução da região, que já foi Mata Atlântica e Floresta Amazônica. Sobre as espécies, houve descobertas fantásticas, junto aos pesquisadores da Fiocruz. Pensava-se que os parasitas tinham chegado ao Brasil com os escravos. Não, eles chegaram com o homem americano, porque foram encontrados em fezes tratadas de 8.500 anos. Temos pinturas datadas de 28 mil anos e datações de 110 mil anos de fogueiras, um material de pedra lascada. Quer dizer, sem dúvida o homem estava lá, no mínimo, há 110 mil anos.
O parque mudou o perfil econômico da região?
A Fundação Museu do Homem Americano, criada para cuidar do parque, é a maior empregadora da região, apesar de não funcionar de forma ideal. Temos o Museu da Natureza, a ser inaugurado em 8 de dezembro, temos museus únicos no Brasil. Além dos funcionários da fundação, há os hotéis, restaurantes, guias turísticos, o que gera um desenvolvimento local. Houve um aumento de visitantes brasileiros e uma redução nos estrangeiros. Antes vinham muitas pessoas da Alemanha, da França, do Japão, o que diminuiu bastante. Já fizemos exposições em Paris, em Bonn e em Amsterdam. O parque é mais conhecido no exterior do que aqui. Na edição de janeiro da revista “Mammoth Trumpet”, a capa trazia uma foto de um sítio da Serra da Capivara com o título: “A maior galeria de arte das Américas”. Já imaginou o que os governos do Brasil e do Piauí fariam se tivessem recebendo milhares de turistas? Agora, acho que temos de voltar à monarquia. D. João foi lá fotografar e perguntei: “Se conseguirmos declarar o Principado Livre da Serra da Capivara, aceita ser nosso rei?”. “Aceito!”, ele respondeu com entusiasmo.
Qual é a verba do parque?
Verba fixa não temos. Quando o parque foi declarado Patrimônio da Humanidade, o governo brasileiro pediu à França para me emprestar recursos para que eu pudesse fazer o projeto. Conheci vários patrimônios da humanidade no mundo. Fomos a Washington e convidamos o Enrique Iglesias, então presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento, para conhecer o parque, em 1998. Ele achou muito bonito, embora ainda não houvesse nenhuma estrutura. Um técnico ficou lá mais de um mês, fez um relatório dizendo que a região nunca teria nenhum futuro econômico baseado em agricultura e criação, porque o solo era muito salgado, com areia, pedra, e havia a seca do Nordeste, mas existia um enorme potencial turístico. Contratamos então uma firma suíça, e foi ela quem fez o projeto de como desenvolver o turismo dentro das características de patrimônio da humanidade. Daí começamos. O Iglesias ficou tão impressionado que o Banco Interamericano fez uma doação de US$ 1,6 milhão, com os quais montamos a infraestrutura do parque, de 260 km². Das 24 guaritas de proteção, a cada 10km, uma era para evitar incêndios e caça, todas com funcionários dia e noite, e rádios. O parque hoje tem 400km de estradas, porque temos mais de mil sítios arqueológicos, e é preciso evitar problemas com cupim, com abelhas que fazem seus casulos em cima das pinturas, blocos que caem e escorrem água em cima das pinturas. Tivemos de reduzir para quatro o número de guaritas, agora destinadas só ao turismo.
Como estão os problemas vinculados à caça e aos incêndios?
Houve muitas dificuldades com a caça, porque os guardas do parque eram terceirizados. O governo pagava à empresa, que não repassava o dinheiro. Os guardas chegavam a ficar cinco meses sem receber salário, então não tinham interesse em trabalhar. Agora são guarda-parques do ICMBio, todos funcionários, mas são em número reduzido. Houve dois incêndios e o último, há cinco meses, era bem grande. Não temos bombeiros. Conseguimos um carro-pipa, o estado mandou bombeiros de Teresina, um helicóptero e um avião para ajudar, e conseguimos apagar o fogo. O turismo também está caindo. Até 2016, recebemos 25 mil visitantes. Em 2017, foram só 16 mil.
Qual o potencial de visitação?
Os patrimônios da humanidade recebem no mundo cerca de cinco milhões de turistas/ano. Era o que se esperava no parque. Infelizmente o acesso era difícil, fica a 600km de Teresina. Foi criado o Aeroporto Internacional São Raimundo Nonato. A verba saiu em 1997, e o aeroporto só foi inaugurado em outubro de 2015. Como toda obra pública, houve desvio de recursos. Fizeram um aeroporto internacional com 100m de pista a menos. A Emirates queria fazer voos da Europa para a Serra da Capivara, só que não podia descer avião grande. E até hoje não temos voos porque não fizeram um posto de combustível. Se um avião desce lá, não pode mais sair.
Quantos trabalham no parque?
Estamos com cerca de 180 funcionários, já foram 270. Antes, toda a infraestrutura e proteção do parque vinham da Petrobras. Além dela, tínhamos o Fundo da Compensação Ambiental, vindo das contribuições das empresas que perturbam o Meio Ambiente. Quando Lula assumiu seu primeiro mandato, foi criado em Brasília o Fundo da Compensação Ambiental, e esses recursos passaram a ficar na mão do governo. Sabemos que o dinheiro que vai para Brasília acaba na Suíça. A Petrobras faliu e parou de colaborar. Demiti muitos funcionários em 2015, ficamos apenas com quatro guaritas, tivemos inclusive que vender carros para poder indenizar as pessoas.
Não foi possível acionar os organismos internacionais?
Organismo internacional não financia pagamento de funcionários. A missão permanente francesa, criada em 1975, da qual eu participava todo ano com meus alunos, continua financiando as pesquisas, e um colega meu, professor em Paris, tem vindo todos os anos com seus alunos. A França é nossa maior financiadora. A Itália assinou um contrato com o governo do Piauí, construíram cinco escolas no entorno do parque, para capacitar analfabetos a trabalhar com turismo. Os professores eram da região, formados por profissionais de São Paulo. As crianças tinham aula de inglês e francês. A estrutura funcionou cinco anos, depois, seria mantida pelo governo do Piauí, que não mandou nada. O Itaú fez uma doação, e as escolas funcionaram mais cinco anos. Elas estão fechadas há mais de cinco anos.
E o governo do Piauí, o que diz?
Há dois anos o governo do Piauí se juntou ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e ao ICMBio na manutenção do parque, com R$ 500 mil por ano de cada um deles. O governo do Piauí entra com R$ 300 mil, o que seria suficiente para manter o parque. Só que o governo as vezes atrasa, como aconteceu agora, quando o dinheiro de dezembro só chegou em maio. Isso porque pedi à vice-governadora, que se virou para enviar os recursos.
Se você oferece algo de diferente, com um mínimo de segurança, acho que explode...
Quando o parque foi declarado Patrimônio da Humanidade e a Emirates queria fazer voos diretos, houve uma firma suíça que se interessou em construir lá um hotel cinco estrelas, como ocorre em todos os patrimônios, inclusive na África. No Piauí, os hotéis são péssimos. Mas quando os suíços viram que não tinha aeroporto, desistiram. É outra coisa que expliquei em Brasília. O público que vai a um patrimônio da humanidade tem mais de 50 anos, de classe A e AA, já com dificuldade de locomoção. Sabe o que o cara de Brasília me falou? Classe AA, a senhora não gosta de pobre?
Esta queda no movimento tem trazido problemas?
São Raimundo Nonato era uma cidade tranquila, minhas jovens alunas francesas passavam uma semana na caatinga com os guias para fazer pesquisas e nunca houve uma falta de respeito. Eu vinha da França com todo o dinheiro para dois meses de pesquisa dentro de uma bolsa, pagava as pessoas e nunca houve roubo. Só esse mês, já teve três assassinatos, pessoas de lá mesmo. E ninguém vai para a cadeia. Outro dia, uma professora ia dar aula de moto, três rapazes derrubaram a moto e a estupraram. Estive na França em abril, e as manchetes mostravam toda essa violência. O “Le Monde” trazia na primeira página: “O Brasil já foi campeão mundial de futebol, agora é campeão mundial de corrupção”. Quando disse à minha empregada, quase analfabeta, que vinha ao Rio de Janeiro, ela me perguntou: “O que a senhora vai fazer nessa cidade cheia de tiros, matando todo mundo?”. Eu me lembro quando vinha ao Rio, nos anos 50, saía de noite sozinha, andava por toda a parte, quantas vezes fui dançar na Rocinha? O que virou a Cidade Maravilhosa?
A senhora já se sentiu ameaçada na sua integridade física?
Quando eu vim da França para cá e comecei a trabalhar no parque para proteger o patrimônio da humanidade, pessoas da região quebravam e queimavam o calcário dos sítios para fazer cal e só recebiam comida dos mandantes, era trabalho escravo. Uma dessas pessoas me avisou que um político ia contratar alguém para me matar. Fui à casa dele e disse que tinha sabido que ele estava contratando alguém para me matar: “Você vai poder me matar, mas vou te dizer uma coisa, tenho amigos no Rio e já falei com eles. Se eu morrer, vocês pegam o pessoal do Rio para matar fulano e toda a sua família”. Desistiu.
Fonte: http://www.jb.com.br/rio/noticias/2018/06/09/entrevista-niede-guidon-a-arqueologia-do-descaso/ (09/06/2018)
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