A Floresta como Artefato

Por: Pedro Novaes - 04.07.2023

(Pedro Novaes é diretor de cinema e geógrafo / pedro@sertaofilmes.com)

Para que o Brasil possa criar um projeto de futuro à altura de seu imenso patrimônio cultural e ambiental, um dos campos em que é mais urgente reformular visões se refere ao entendimento de nossa história antes do início da colonização.

Ainda prevalece a compreensão pobre e, no fundo, preconceituosa, segundo a qual nosso vasto território era em essência, antes da invasão portuguesa, um grande vazio humano. Segundo essa visão, as sociedades indígenas, onde as havia, eram relativamente homogêneas, de pobre cultura material e essencialmente formadas por povos caçadores e coletores ou de agricultura apenas incipiente. Faltaria assim às nossas sociedades indígenas a sofisticação e a riqueza cultural e material dos povos andinos e mesoamericanos, como os incas e os maias.

Felizmente, entretanto, já há algum tempo, a arqueologia e a antropologia têm denunciado esses preconceitos e oferecido um panorama cada vez mais rico e complexo das sociedades que habitavam o território brasileiro antes da chegada dos colonizadores e do início do genocídio dos nossos povos indígenas.

Com base em pesquisas que se intensificaram sobretudo a partir dos anos 1990, cientistas como o professor Eduardo Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, vêm mostrando uma história de grande diversidade cultural, política e tecnológica para as sociedades que habitaram a Amazônia, cujos registros humanos mais antigos remontam há pelo menos 12 mil anos.

Em lugar de uma trajetória única que vai do nomadismo e da caça e coleta em direção ao sedentarismo e à agricultura, e de sociedades horizontais ao surgimento de estruturas políticas verticalizadas e complexas, a história indígena brasileira sugere uma ampla gama de estratégias de adaptação e de caminhos tecnológicos. 

Os conhecimentos enterrados nos sítios arqueológicos de lugares como o interflúvio Negro-Solimões, no Amazonas, ou no Alto Xingu, falam, por exemplo, da domesticação de um número de espécies vegetais sem paralelo em qualquer outro local do planeta. Contam também da existência de grandes constelações de aldeias em determinados momentos da história, chegando a aglomerações humanas de mais de 5 mil indivíduos, que envolviam extensas redes de estradas e trocas e também estruturas comuns de defesa, como valas e paliçadas.

Como diz Eduardo Neves em seu Sob os Tempos do Equinócio, em que sintetiza o que a arqueologia sabe hoje sobre a pré-história da Amazônia, "os povos antigos da Amazônia (...) fizeram artefatos de pedra lascada e depois pararam de produzi-los, inventaram a cerâmica e depois deixaram de fabricá-la, (...) domesticaram plantas, mas em muitos casos não quiseram ser agricultores, vislumbraram a possibilidade do Estado, mas dela fugiram sempre que puderam. Na Amazônia central, ao longo dos séculos, a arqueologia mostra uma longa história de alternância entre formas de vida bastante distintas, mas nunca, necessariamente, em direção ao Estado, mesmo nos contextos de densidade demográfica maior."

Mais importante, a ciência vem jogando por terra a ideia da floresta como simples dádiva da natureza. Ocupada - de forma intensa em muitos locais e momentos - há 12 mil anos, a floresta amazônica que temos hoje é na verdade um legado dessas sociedades que ali viveram. Os complexos ecossistemas que constituem nosso maior bioma são resultado da interação desses povos originários com a ecologia única da região. 

"A floresta", explica Neves, "tem que ser vista como um patrimônio não só natural, mas biocultural, porque ela representa essa interação da presença indígena, nos últimos 12 mil anos pelo menos, e, mais recentemente também, quilombola e ribeirinha".

As pesquisas arqueológicas mostram, por exemplo, a abrangência e significado na Amazônia das chamadas "terras pretas de índio", que são amplas e onipresentes extensões de solos extremamente férteis produzidos por populações indígenas a partir da interferência direta nos ambientes.

Eis uma ideia literalmente revolucionária que precisa com urgência ser incorporada aos livros de Geografia e História usados em nossas escolas: a Amazônia - e certamente também o Cerrado, a Mata Atlântica, o Pantanal, a Caatinga e os Campos do Sul - não é natureza intocada, e sim algo a meio caminho entre artefato e natureza. A floresta é também fruto, na verdade, da sofisticada "inteligência ecológica" de seus primeiros moradores, para usar a expressão sugerida por João Moreira Salles em seu Arrabalde: Em Busca da Amazônia.

"As florestas são nossas pirâmides", aponta Eduardo Neves em uma linda metáfora que ajuda a desvelar a grandiosidade do trabalho realizado por essa inteligência indígena.

Para revelar ainda mais o tamanho dessa riqueza em nosso passado, Eduardo coordena agora o projeto "Amazônia Revelada", patrocinado pela National Geographic. Por meio de aeronaves equipadas com sensores Lidar, um sistema de varredura a laser que permite detectar a presença de vestígios arqueológicos sem a necessidade de intervenção física ou escavação no terreno, serão mapeadas extensas áreas nos estados do Pará e de Rondônia. Essa é a mesma tecnologia que permitiu descobrir grandes estruturas encobertas pela floresta na Amazônia boliviana, em 2022, e em 2018 na Guatemala. 

Precisamos compreender a riqueza dessa parte ainda largamente desconhecida de nossa história, que fala da sofisticação de milênios de relações de equilíbrio com a floresta. Quem sabe assim consigamos construir um projeto de futuro para esse bioma e para nosso país - um projeto que não seja o de sua pura e simples destruição em benefício dos piores interesses econômicos.

Fonte: A Floresta como Artefato - @aredacao

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