Geoglifos da Amazônia: O povo domador das águas (Parte 1)
Texto de Franklin Levy
Instituto de Arqueologia Brasileira – IAB
Rio de Janeiro - RJ (março de 2009)
Fotos: Sergio Valle.
Resumo
Proposta de uma visão analítica e funcional sobre o traço mais visível na cultura dos povos construtores de geoglifos. Designa-se geoglifos de “drenos”, como denominação funcional. Seus construtores habitaram e construíram suas estruturas nas terras altas dos interfluvios dos rios Purus e Juruá no Estado do Acre. Há noticias de sítios em Rondônia e na Bolívia. Ainda se desconhece o centro de irradiação e de origem desta cultura. As datações até o momento estão nos seus extremos 3000 AP e 700 AP.
Abstract
An analytical view over the most visible cultural trace of the geoglyph builders people is proposed. From now on, the geoglyphs will be called drains, as a functional nomination. The geoglyph builders inhabited on high lands of the Purus and Juruá rivers basins in the State of Acre. There are notices of sites in Rondônia and Bolivia. The origin and irradiation center is still unknown. The dates, until today, are between 3000 and 700 years ago.
Introdução
Os geoglifos são marcas de drenos circundando aldeia, lugar de culto ou roças, com a finalidade de rebaixar o lençol freático durante o período de chuvas, para permitir maior habitabilidade ou produtividade no seu interior. São estruturas geométricas de terra compostas de fossos com diversas medidas, que circundam sítios de habitação ou de outros usos. Variando de 50 a 350 metros de diâmetro e a largura dos fossos de 2 a 15 metros. Profundidades de até 3 metros, pequena mureta interna ladeando a valeta e a externa ultrapassando um metro de altura. O traçado perfeito, que representa: círculos, círculos duplos concêntricos, quadrado, quadrado inserido em circulo, circulo inserido em quadrado, quadrado cortado diametralmente oposto por dois círculos, octógonos, valetas retas simples partindo das geométricas, ligando estruturas ou tangenciando as figuras e caminhos retos. Rejeitamos a idéia de terem originado de um estado forte ou centralizado, mas pela ação organizada da “reciprocidade”, em mutirões envolvendo comunidades na forma de festivais de amplo alcance, de periodicidade anual, preparando-se para as chuvas. Por obrigação mítica e sem coerção autoritária, escavariam novas estruturas e reparariam as antigas, mantendo o sistema funcionando, pelo bem coletivo e pela paz com os elementos naturais e sobrenaturais. Como conseqüência da pratica de colaboração intergrupal, observamos convergência cultural, ao que corresponderia convivência de diversos povos, com traços comuns, ou diversos, mas vivendo em harmonia.
Propomos razões que explicam as mudanças do traçado geométrico das estruturas, e de outros usos para as valetas e muretas. Trataremos dos caminhos construídos, e por fim propomos alguns temas correlacionando estruturas semelhantes e pedimos uma observação mais ampla como fenômeno regional, e independente das atuais fronteiras, o que nos obriga a repensar paradigmas, aceitando um novo olhar.
Elementos para um relato póstumo de uma cultura original: O homem dos drenos
Nos longos períodos de chuva na Amazônia, é fundamental, para a saúde das pessoas, manterem o chão das casas seco. É um desafio preservar os alimentos longe das águas e não permitir que as raízes dos cultivos se afoguem. Ainda que habitassem as partes mais altas do terreno, o lençol freático aflora tanto por saturação como por capilaridade. Precisavam de chão seco para todas as instancias, dentro das casas ou fora delas desde que fosse o espaço vital. O solo é de argila, e como diz o homem da “colocação”, derrete, vira mingau. É uma argila plástica com muito alumínio, textura coloidal e pobre em matéria orgânica, de pouca sustentação quando encharcada e uma pessoa em pé tende a afundar até o tornozelo. Na condição de chuva intensa, com o lençol freático aflorado, não há condição de manter um poste fincado com segurança. O morador atual só faz a casa nas terras altas, e também a eleva o chão com palafitas. Para o assoalho da casa usa tábuas de paxiúba (Socratea exorrhiza). Também dá preferência aos barrancos à beira do rio para construir habitação.
A observação é a mãe da imaginação e instrumenta a criatividade: a beira do barranco o chão é mais firme que longe dele. Na beira do barranco o lençol freático mina das paredes formando nascentes e secando o solo acima. Este detalhe não passou despercebido aos antigos habitantes da região.
Na Nova Guiné, (Renfrew & Bahn, 1993) relatam vestígios, em antigo pântano, de drenos para cultivo, com antiguidade de 6000 anos. Esses drenos são compostos de centenas de metros de valetas e uma rede de pequenos canais, formando canteiros de um a dois metros quadrados e com vestígios de agricultura. Este precedente tão antigo e distante é para ilustrar a idéia que não há limite de tempo para que a necessidade se associe à invenção.
O aldeamento cercado por um fosso com mureta manteria o interior mais seco. A valeta de dreno, por toda lógica começa aí, mas não sabemos ainda em que momento. Podemos também supor que começou com uma raspagem circular para se proteger da propagação das queimadas; daí por diante aperfeiçoaram os métodos, multiplicando seus usos, sendo as funções polivalentes. Seria uma invenção do tipo que surge espontaneamente e pela força da necessidade, no lugar onde a pressão ambiental exige. Para vencer a crise, necessário foi insight criativo, que pode se dar rápido ou durar milênios para acontecer. Podemos lembrar que muitos povos da Amazônia e outras terras baixas se utilizaram de técnicas especificas de movimentação de terra para superar seu convívio com as águas.
Paradoxalmente os “povos dos drenos” ou dos geoglifos, não habitavam terras baixas, mas a parte mais alta da região, onde se instalaram de forma sedentária, e habitando os baixios de forma sazonal e em pequenos grupos aproveitando fartura de temporada.
Mas podemos afirmar com certeza, que olhavam mais em direção ao “pajonal” do “Llanos Moxos” do Beni e de Baures na Bolívia, onde se desenvolvia tecnologias semelhantes, do que em direção à floresta da Amazônia Central .
Técnicas
Para Galeti (1982), um solo agrícola ideal é formado de 45% mineral e 5% orgânico; a metade que resta é água e ar em partes iguais. ”As plantas necessitam de água para poder viver, (elas não podem viver na ausência completa de água), mas também não podem dispensar o ar; quando este falta no solo, as raízes morrem asfixiadas. É o que acontece em terrenos alagados, onde a água ocupa quase toda a parte vazia (a água enche todos os poros expulsando o ar). O que se deve fazer? Eliminar o excesso de água; dar condição para que o ar ocupe uma parte dos poros. Essa pratica agrícola recebe o nome de drenagem”.
A drenagem é a remoção por meios artificiais do excesso de água acumulada e tem por fim tornar o solo mais aproveitável ou adequado para as atividades do homem (Cruciani, 1985).
O conhecimento empírico acumulado pelo povo dos drenos através de dois milênios, de erros e acertos, na construção e utilização da tecnologia de drenar o espaço necessário à vida, nos faz supor que atingiram a medida exata para a engenharia de suas necessidades. Como as características geológicas do solo onde construíram os drenos se mantêm idênticas ao tempo da construção, podem extrair do estudo do solo, com as técnicas atuais, analisando composição química, granulométrica, permeabilidade, condutibilidade etc., as características exatas para os cálculos funcionais como a engenharia atual a entende. Mediante o estudo destas características, e simulando as necessidades calculadas para drenar o terreno em estudo, podem-se comparar as dimensões originais, com as calculadas atuais. Dessas comparações podemos extrair dados de pluviometria antiga, ou as variações de utilização com as incorporações funcionais que esses construtores aplicaram a sua obra. Ou seja, se mais utilizações para as valetas foram aplicadas, por essas variações (dimensões comparadas), podemos deduzir quais foram esses usos.
Outras estruturas
As estruturas de terra são bem disseminadas pela América do Sul (Calandra & Salceda 2006), (Lathrap 1970), (Saulieu, 2008), (Erickson 2000 e 2006) e Mann (2007) . A exceção das casas subterrâneas da serra gaúcha (Mentz Ribeiro, 1999) todas as estruturas de terra estão ligadas ao manejo ou à defesa das águas em terras baixas ou alagáveis. Aterros, colinas artificiais, canteiros de cultivo, canais de irrigação e de transporte, de piscicultura, muretas, caminhos e geoglifos são obras muito visíveis e tem pontos em comum, principalmente na mobilização de varias comunidades para realizá-las e isto aconteceu durante longos períodos de tempo. Mas isto é apenas um traço cultural e tecnológico que vários povos dominaram sem repartir outros traços culturais ou lingüísticos. Cada um desenvolveu técnicas apropriadas às suas necessidades, as aperfeiçoaram e os incorporaram ao inventario de seus conhecimentos técnicos e certamente míticos.
Embora seja fácil associar povos vizinhos como os de Moxos, ou Baures do Beni e os povos dos drenos, construtores de geoglifos do Acre, porque ambos foram exímios manipuladores de terra, e em volumes monumentais, suas obras carregam significados diferentes. Foram modificadores radicais da paisagem e conseqüentemente dependentes de sua obra e de seu modo de subsistência peculiar. Ambos, com projeto definido, se impunham tarefa não menos importante para superar com enorme esforço, o ambiente adverso que aprenderam a dominar com vantagens substanciais. Não nos referimos apenas ao aspecto econômico, mas à coesão social desenhada na reciprocidade, que constatamos no somatório dos esforços e metodologia empregada, expostos na obra que até hoje admiramos, e feita sem necessidade de autoridade centralizadora.
A visão de mundo, e a estrutura social decorrente do “dualismo”, como estrutura mental que vê tudo com o seu oposto, complementar e dependente, e que em conjunto formam a unidade, é o gerador da “reciprocidade” como meio de sobrevivência da própria unidade que tem que ser preservada na sua dualidade. É a nossa lente pela qual vê desenhado nos geoglifos esse principio, que é tão difundido na Amazônia.
Correlacionamos os drenos com outras estruturas de terra, e salvo as “ilhas de floresta”, concluímos que os poucos pontos comuns que existem são o esforço de movimentar terra, e as motivações coletivas. Se nas regiões de geoglifos não há inundações como em outras terras baixas amazônicas, onde o homem eleva o chão para manter o pé seco e para não afogar as raízes de seu cultivo, no Acre sofisticaram os recursos, abrindo espaço para a drenagem do subsolo, e obtiveram igual resultado. A execução das obras exigiu não apenas tecnologia material, mas também a organização da vontade coletiva, buscando esse objetivo especifico na estrutura social.
Caminhos
Os caminhos ancestrais que se vem claramente nas fotos aéreas dos geoglifos do Acre, ainda não foram estudados, nem mesmo cadastrados como elemento cultural ancestral, nem definidos como sitio arqueológico. Parssinen e Korpisaari (2003) registraram em desenho e fotos o conjunto de geoglifos da Fazenda Colorada (S 09º 52’ 15.0” – W 67º 31’ 55.7” ) e descreveram sem analisar em profundidade, antigo aterro que na fotografia publicada se vê com mais de 500 metros de comprimento e pouco mais de 10 de largura. Vêem-se sobrepostos e acompanhando o mesmo alinhamento de dois geoglifos, e ainda há alinhado um terceiro em forma de U com as valetas duplas. Essa linha de rumo é a linha mais alta, ou crista do interfluvio. Portanto o aterro ou estrada é mais antigo que eles. Não afirmamos que seja caminho porque não temos ciência de suas ligações, e ainda pode ser canteiro de cultivo, pista para jogos ou qualquer coisa que preceda uma investigação mais seria. Estes caminhos sempre associados aos geoglifos ou sítios de drenos, são testemunhos físicos da necessidade de interligações entre comunidades, e sua efetiva prática.
Erickson (2000) separa os caminhos em muito elaborados; com aterros e valeta de proteção e preservação, e os caminhos bem traçados e demarcados, com as simples trilhas de uso esporádico, e sem valor cultural relevante, e sem a engenharia indígena. Erickson (2000) ainda define caminhos como estruturas formais feitas de vários materiais, que conecta lugares definidos culturalmente, em contraste com as trilhas ocasionais. Esta idéia de conexão é a motivação que apelamos aos pesquisadores para levarem em consideração na perspectiva mais ampla de visão de um povo, e suas relações políticas. Erickson (2000) afirma que a analise estrutural da organização formal da rede de caminhos pode fazer entender melhor a interação social, o domínio da terra e o sistema de crenças e praticas da vida quotidiana.
Talvez não tenhamos no Acre caminhos tão construídos como nos Llanos Moxos, nem associados a canais e diques, mas os caminhos são claros e visíveis, e tem valor cultural inconteste. Espera-se que as atuais e as futuras gerações de arqueólogos dediquem esforços para o entendimento do significado dos caminhos do Acre. Vale ressaltar que há poucos anos, os geoglifos e os caminhos estavam invisíveis sob a floresta e hoje, embora lamentemos essa perda de cobertura, foi recomposta a paisagem antiga, da época em que permitiu traçados tão retos, próprios de savana. Há citação de caminhos por Heckemberger no Alto Xingu (2005), Posey nos Kayapos, Nimundaju (1952) Denevan (1990)
Mojos e Acre
Se compararmos os geoglifos do Acre com as valetas nos Llanos Moxos, no departamento de Beni na Bolívia, (Calandra & Salceda, 2004) e (Erickson, 2006) encontramos semelhança apenas na enorme movimentação de terra com grande esforço coletivo. Mas não negamos que possam ter tido contato, e conseqüentemente troca de informações.
Muitos topônimos locais são de origem lingüística Aruak e sua difusão atinge o Beni, com importante componente étnico nos Mojos (Viertanen 2007:121). Reforça esta possibilidade a constatação de que há mais proximidade entre estes povos de savana de que com os da floresta: no Beni, a região é inundável durante mais de 5 meses do ano e a água escorre lentamente até secar o solo. As valetas são reservatórios para o resto do ano e os diques, represas para essa engenharia complexa, que incluem canteiros de cultivo elevado e aterros de habitação em forma de colinas. A água represada garante transporte de canoa, piscicultura, umidade para os cultivos nos canteiros elevados, e atravessam a seca sem dificuldade. No Acre os drenos são obras de engenharia única, para o uso coletivo. Nos Llanos Moxos há um conjunto de obras se uso comum e coletivo (canais e diques) e outras associadas a obras de uso particular ou familiar: os canteiros de cultivo. Portanto, lá as águas são desejadas como meio de vida, já no Acre, vemos as valetas, como defesa contra o excesso. A possível utilização destes drenos para outra função ainda é motivo de investigação.
As datações das estruturas de terra dos Llanos Moxos são contemporâneas com os geoglifos do Acre. Em Mojos, aproximadamente 2500 anos para os canteiros de cultivo e as colinas de ocupação o máximo de 3000 anos (Erickson, 2000). A data mais antiga para os geoglifos do Acre, na base da mureta externa, é de 3078 anos (Dias Junior, Carvalho e Zimmermann, 2006). Portanto as datações ainda não esclarecem origem, mas sabemos de uma longa contemporaneidade, onde troca de experiências entre povos pacíficos, tão próximos e vivendo em meios tão semelhantes, deve ter ocorrido, sem reprodução do objeto cultural, mas com soluções práticas diversas, pensadas e adaptadas ao meio físico próprio, superando os desafios da natureza.
Na região de Moxos, no Beni encontram-se estruturas semelhantes as do Acre, com a denominação local de “ilhas de floresta”. Nos lhanos, onde isto ocorre, é região de savanas inundáveis, e vem sendo estudado desde Nordenskiöld sempre associado aos “camellones de cultivo”, por apresentar valeta circular e chão elevado, como as precedentes, mas falta estudo comparativo. Erickson (2008) os descreve como ilhas de terra preta, usados para o cultivo do cacau nativo e a formação de compostagem, com condições de manter as características de fertilidade que o exterior lixiviado não teria. Calandra & Salceda (2004) também as estudaram como “lomas de ocupacion”. Veremos mais adiante como no Acre a cosmologia se sobrepõe à funcionalidade no traçado dos Geoglifos aplicando uma geometria perfeitamente definida. Já nos Baures não se vê essa preocupação e pensamos que as determinantes sejam funcionais, embora nada impeça que tenham imiscuído razões místicas nas suas obras de valetas irregulares e elípticas. Os Mojos faziam conjuntos harmoniosos e integrados de elementos tais como canteiros de cultivo, canais, diques, aterros , estradas, com uma organização próxima ao traçado urbano. (ver Erickson 2000, 2003, 2006, 2008) As pesquisas em curso, se incluírem caráter comparativo, trarão nova luz à esta questão.
(Continua...)
Comentários
Postar um comentário