O engenhoso segredo da sobrevivência dos maias
- Alex
Fox
- BBC
Travel
02/10/2021
Na antiga cidade maia
de Tikal, na Guatemala, os visitantes se veem cercados por íngremes pirâmides
de calcário quase tão altas quanto a catedral de Notre Dame, em Paris, enquanto
gritos de macacos bugios e tucanos emanam da floresta tropical ao fundo.
Construídas sem a ajuda de animais de carga, ferramentas de metal ou a roda, essas grandiosas construções de pedra serviram como sedes de poder para os reis e sacerdotes que governavam uma das cidades-estado mais influentes do reino maia, que abrangia a Península de Yucatán, no México, Guatemala, Belize, partes de Honduras e El Salvador
Tikal era o centro
econômico e cerimonial de uma civilização que, à luz dos recentes mapeamentos aéreos a
laser que revelaram mais de 60 mil estruturas escondidas por
séculos em meio à selva, pode ter abrigado de 10 a 15 milhões de habitantes no
total.
Na presença dos enormes palácios e templos de pedra de Tikal, cada um posicionado levando em conta a movimentação diária do Sol no céu, a proeza dos maias como arquitetos e astrônomos se avoluma.
Mas os maias nunca teriam previsto eclipses com precisão e
esses monumentos nunca teriam sido erguidos em direção ao céu sem o domínio de
algo muito mais elementar para a sobrevivência em Tikal: a água.
Sem rios ou lagos por
perto, os maias tiveram que criar uma rede de enormes reservatórios para
coletar e armazenar água da chuva suficiente durante a estação chuvosa para
abastecer sua considerável população — as estimativas variam de 40 mil a 240
mil pessoas no apogeu da cidade no século 8 — durante os quatro a seis meses de
estação de seca.
Esses reservatórios
propiciaram mais de 1.000 anos de presença maia em Tikal, de aproximadamente
600 a.C. até seu centro urbano ser abandonado pela classe dominante por volta
de 900 d.C.
No ano passado,
arqueólogos descobriram por meio de técnicas científicas modernas uma nova
proeza dos feitos hidrológicos dos maias.
Amostras de sedimentos retiradas dos reservatórios de Tikal revelaram que os maias criaram o mais antigo sistema de filtragem de água conhecido no hemisfério ocidental.
O sistema de
purificação de água dos maias era tão avançado que um de seus principais
materiais, a zeólita, ainda é amplamente utilizado nos filtros de água de hoje.
As zeólitas são um
tipo de mineral vulcânico composto principalmente de alumínio, silício e
oxigênio que se forma quando a cinza vulcânica reage com a água subterrânea
alcalina.
Elas se apresentam em
muitas formas e possuem propriedades físicas e químicas únicas que permitem
filtrar contaminantes — desde metais pesados a micróbios minúsculos.
Os grãos individuais
de zeólitas têm uma estrutura porosa, o que faz deles excelentes filtros
físicos, e também são carregados negativamente, o que significa que outros
elementos se ligam prontamente a eles.
Isso quer dizer que
quando a água passa pelas zeólitas, as partículas suspensas podem ficar física
ou quimicamente presas aos grãos de zeólitas enquanto a água continua fluindo
pelas aberturas.
Embora os arqueólogos só tenham encontrado zeólitas em um dos reservatórios de Tikal, agora conhecido como Corriental, fragmentos de vasos de argila encontrados ali sugerem que a água purificada de era usada especificamente para beber.
Os pesquisadores por
trás da descoberta dizem que o uso maia das zeólitas é o mais antigo uso
conhecido do mineral para purificação de água no mundo, antes de aparecer
novamente em um sistema de filtragem de areia desenvolvido pelo cientista
britânico Robert Bacon em 1627 — cerca de 1,8 mil anos depois.
O sistema de filtragem
de água por zeólitas dos maias, que os acadêmicos acreditam ter sido construído
por volta de 164 a.C., é anterior a um filtro de pano conhecido como "luva
de Hipócrates", que foi desenvolvido na Grécia antiga por volta de 500
a.C., mas o método dos maias teria sido muito mais eficaz na remoção de
contaminantes invisíveis, como bactérias ou chumbo.
"Sou um nativo
americano e sempre me incomodou que os arqueólogos e antropólogos
tradicionalmente presumissem que os povos indígenas das Américas não
desenvolveram o músculo tecnológico que foi encontrado em outras partes do
mundo antigo, em lugares como Grécia, Egito, Índia ou China", diz Kenneth
Tankersley, geólogo arqueológico da Universidade de Cincinnati, nos EUA, e
principal autor do estudo que documenta o uso de zeólitas pelos maias.
"Este sistema
propiciou aos maias água potável segura por mais de 1.000 anos, e outros
sistemas de filtração conhecidos daquela época eram primitivos em comparação a
ele — o método de filtração grego antigo era apenas sacos de pano."
Tikal está localizada
onde hoje é o norte da Guatemala, e nesta parte do mundo há apenas duas
estações: uma muito úmida, e outra muito seca.
Para tornar as coisas
ainda mais desafiadoras, as chuvas torrenciais da estação chuvosa escoam
rapidamente porque, à medida que a água da chuva se infiltra pela fina camada
superficial do solo, torna-se ácida o suficiente para dissolver o calcário rico
em cálcio que compõe a base rochosa da região.
Isso cria o que os
geólogos chamam de paisagem cárstica, repleta de buracos e cavernas onde o
lençol freático fica a cerca de 200 m abaixo da superfície, bem fora do alcance
dos maias.
Sem fontes de água
doce por perto para usar, os moradores dessa metrópole da América Central
tiveram que inventar maneiras de fazer a água durar quando chegasse na estação
chuvosa.
É aí que entram em
cena os reservatórios — e como Tikal está localizada em torno de uma colina, os
maias foram capazes de utilizar habilmente as encostas para canalizar água para
esses reservatórios.
Até mesmo a grande praça central, que fica entre os Templos 1 e 2 e é ladeada pela acrópole principal, é pavimentada com pedras enormes que foram colocadas na inclinação certa para drenar a água em canais que desaguam nos reservatórios do Templo e do Palácio próximos.
Os visitantes modernos
de Tikal precisarão fazer um esforço extra para localizar os reservatórios, que
se apresentam hoje principalmente como depressões no solo, mas algumas das
barragens e bermas de barro usadas para reter as vastas quantidades de água que
outrora matavam a sede da cidade ainda são evidentes para o observador
informado.
Estima-se que o
reservatório do Palácio já armazenou 31 milhões de litros de água, e
acredita-se que o Corriental purificado por zeólitas teve uma capacidade de 58
milhões de litros em seu apogeu.
A descoberta do
sistema de filtração de Corriental surgiu de um trabalho de campo realizado por
volta de 2010, quando os pesquisadores coletaram 10 amostras de sedimentos de
quatro reservatórios de Tikal.
Estas amostras
revelaram que níveis perigosos de contaminação por mercúrio e sinais de
proliferação de algas tóxicas infestaram os reservatórios do Palácio e do
Templo, perto do coração de Tikal, na época em que as elites dominantes
abandonaram o centro da cidade no século 9.
Mas quase tão
impressionante quanto a própria contaminação foi o fato de que o reservatório
de Corriental permaneceu praticamente intocado, mesmo quando os reservatórios
do Palácio e do Templo se tornaram tóxicos.
Quando Tankersley
analisou mais de perto as amostras de Corriental, ele encontrou quatro camadas
discretas de areia que apresentavam pedaços de quartzo cristalino e zeólitas,
que não apareciam em nenhum dos outros reservatórios.
Quando a equipe fez um
levantamento do entorno, não havia fontes naturais desse tipo de areia, muito
menos de zeólitas, levando os pesquisadores a sugerir que o material havia sido
trazido intencionalmente para uso em algum tipo de filtro na entrada do
reservatório.
Por acaso, um dos
pesquisadores do projeto sabia de uma depressão a cerca de 30 km a nordeste de
Tikal que apresentava uma areia de aparência semelhante, que é conhecida
como Bajo de Azúcar, que os moradores locais haviam dito a
ele ter água cristalina e de sabor doce.
Os testes revelaram
que as rochas e areia de Bajo de Azúcar continham zeólitas e,
portanto, podem ter sido a fonte de Tikal para as zeólitas em Corriental.
"Sem uma máquina
do tempo, não sabemos o que aconteceu exatamente", diz Tankersley.
"Mas não é
preciso muita dedução para imaginar alguém de Tikal pensando: 'Se água doce e
limpa está saindo desse tufo vulcânico cristalino, talvez poderíamos quebrar
alguns e usar para tornar a nossa água limpa também'."
Os pesquisadores
levantam a hipótese de que a areia de zeólitas pode ter sido imprensada entre
camadas de folhas de plantas entrelaçadas para fazer filtros.
Esses filtros podem
ter sido embutidos em paredes porosas de tijolos de calcário que os maias
instalaram no caminho da água que flui para o reservatório.
De acordo com o estudo
que detalha o uso de zeólitas pelos maias, a areia por si só faria a água
parecer clara, mas não teria nenhum impacto sobre os micróbios ou o mercúrio.
Com a adição de
zeólitas, os maias obtiveram água límpida que também era limpa até para os
padrões modernos.
"Os maias podem
não ter entendido o que a zeólita em particular estava fazendo, mas entenderam
a importância de manter a água limpa", afirma Lisa Lucero, antropóloga da
Universidade de Illinois, nos EUA, que não estava envolvida no estudo.
"E empregaram sua
tecnologia e seu conhecimento do meio ambiente para purificar sua água
potável."
As quatro camadas de areia contendo zeólitas sugerem que o filtro foi destruído por enchentes durante as estações chuvosas particularmente fortes e, subsequentemente, reconstruído várias vezes.
Embora Corriental seja
o único lugar onde este sistema de filtragem de zeólitas maia foi encontrado,
isso não exclui seu uso em outros lugares.
Liwy Grazioso,
diretora do Museu Miraflores da Guatemala e coautora do estudo que descobriu a
contaminação dos reservatórios do Palácio e do Templo, espera que esta
descoberta incentive mais pesquisas sobre os reservatórios maias.
"Não creio que
Tikal fosse o único local com esta tecnologia", diz ela.
"Os reservatórios
estavam por toda parte no mundo maia e apenas alguns foram estudados, mas se
não os estudarmos, nunca saberemos."
Para Tankersley, essas
descobertas revelam as riquezas que podem ser encontradas quando os
pesquisadores olham além dos artefatos brilhantes feitos de ouro ou jade.
Ele sugere que os
visitantes de Tikal não devem se maravilhar apenas com as estruturas, mas
também contemplar as pessoas que as construíram há 1.000 ou até 2 mil anos
atrás, sem máquinas ou animais de carga.
"Pense sobre quais foram suas realizações", diz ele, "e lembre-se de que este não é um povo extinto, essas realizações são herança da moderna população indígena da América Central."
Fonte: O engenhoso segredo dasobrevivência dos maias - BBC News Brasil
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