O Passado entre as águas do Titicaca













Texto de Leandra Rajczuk

Através de uma coleção fotográfica, o Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP coloca à disposição do público em geral cenas da história de antigas civilizações pré-colombianas, anteriores aos Incas, que habitaram as margens do mais alto lago navegável do mundo. O material, resultado de uma longa caminhada realizada por um historiador, é a mais nova doação feita ao acervo da instituição.

São imagens inéditas dos vestígios deixados pelas civilizações pré-incaicas que tornaram habitáveis, há centenas de anos, os frios e inóspitos altiplanos andinos, entre a Bolívia e o Peru. Foi pensando no registro e conservação desse patrimônio da humanidade que o historiador Dalton Delfini Maziero reuniu 86 fotos e textos explicativos em um dossiê recentemente doado ao acervo da Biblioteca do Museu de Arqueologia e Etnologia(MAE) da USP.

Com a dimensão de 15 x 21 cm, as fotografias são resultado de uma expedição denominada Projeto Titicaca, realizada entre agosto e outubro do ano passado, na região do mais alto lago navegável do mundo, situado a 3.812 metros acima do nível do mar. "Meu objetivo foi o de estudar a história, os mitos, as lendas e as ruínas arqueológicas de povos tão antigos que o tempo mal registrou", afirma Maziero. Para alcançá-lo, o historiador tornou-se o primeiro brasileiro a percorrer a pé os 1.300 quilômetros em torno do lago.

Por meio das lentes de uma Nikon, Maziero registrou cenas incríveis como a parte de trás da Porta do Sol - um dos mais importantes monumentos arqueológicos da América do Sul -, a necrópole de Sillustani, antigo cemitério da cultura Colla, com sepulturas que chegam a 12 metros de altura, além das misteriosas ruínas da civilização Pucara - 1100 a.C. até 100 d.C. - com pirâmides e templos dedicados ao sacrifício humano. "São vestígios que impressionam não só pelas imensas áreas ocupadas, mas também pelo seu abandono e desconhecimento."

"É uma coleção bastante interessante porque pode ser utilizada tanto por especialistas como pelo público em geral", ressalta Eliana Rotulo, diretora da Biblioteca do MAE. "O material foi organizado de maneira sintética, didática, objetiva e simples, oferecendo uma consulta rápida e de fácil assimilação." Segundo Eliana, as fotos irão complementar o acervo do museu - o maior conjunto de obras do País em arqueologia brasileira, americana, mediterrânica, médio-oriental, além de museologia e etnologia - sobre as culturas andinas. "Dalton teve o cuidado de elaborar um material consistente voltado para a preservação sem interferir no contexto dos sítios arqueológicos que registrou", ressalta. "Existe uma carência por dados e obras com essas características voltados para estudantes de 2º grau e primeiros anos da faculdade e por isso vamos colocar as referências desse dossiê no Dedalus, o Banco de Dados Bibliográficos
da USP."

Culturas esquecidas

Uma das principais preocupações de Maziero foi a de elaborar um material que não ficasse restrito a um público específico e, assim, incentivar e conscientizar as pessoas para a preservação dos locais. "Muitas dessas áreas que podiam ser vistas há dez anos não existem mais porque foram completamente depredadas", observa o historiador. "Nesse sentido, as imagens constituem importantes referências para se saber como era a região." Sabe-se que civilizações inteiras desapareceram das margens do Titicaca em algum momento da história. Em um passado remoto, quando os primeiros homens, ainda nômades, chegaram ao Altiplano por volta de 15.000 a.C. - no Brasil, existem indícios de que o homem teria chegado à Serra da Capivara, no Piauí, há 50 mil anos -, foi à beira do Titicaca que encontraram um clima suportável, diferente do frio glacial das altas montanhas andinas. Segundo Maziero, os livros de História pouco falam das diversas culturas que habitaram aquela região por milhares de anos e limitam-se a descrever a civilização inca, povo que dominava a região quando os espanhóis chegaram ao Novo Mundo, no final do século 15.

"Só nas proximidades do Titicaca, mais de 20 grupos distintos já foram identificados e muitos deles, como os pucaras e os tiwanakus, construíram ali cidades há mais de 3,5 mil anos", relata. Um desses achados fica a apenas 30 quilômetros da cidade peruana de Puno: o sítio arqueológico de Sillustani, onde há sepulturas com mais de dez metros de altura. "Esse local está associado ao povo colla, que se estabeleceu no Peru por volta de 1200", diz. "Próximas dessa área, na cidade de Taraco, peças artísticas esculpidas em um só bloco de pedra, que chegam a medir mais de sete metros de altura, continuam sendo desenterradas por camponeses e acabam sendo vendidas no comércio ilegal."

Ao caminhar na margem norte do Titicaca - um longo e árido percurso que se estende por cerca de 700 quilômetros, entre Juliaca, no Peru e Achacachi, na Bolívia - pode-se apreciar ruínas ainda desconhecidas dos livros e do turismo. Foi através de uma dessas conversas com os aymaras - descendentes diretos dos povos da Antigüidade e que vivem ao redor de praticamente todo o Titicaca - que o viajante ficou sabendo de pequenas estradas que levavam a cidades gigantescas e abandonadas há séculos nos cumes das montanhas. "Merkemarca, Queñalata e Siani são alguns desses locais esquecidos, dos quais não se sabe praticamente nada, mas onde se encontram tumbas seculares abertas, ossos expostos e cerâmicas fragmentadas ao alcance das mãos."

De acordo com Maziero, nas ruínas de Huata - outro local abandonado -, é possível avistar estátuas de apenas 60 centímetros de altura, sem formas definidas e enterradas pela metade no chão, que são adoradas como deuses protetores da agricultura. "Sem outros meios de ganhar a vida, o plantio é a base de sustento dos aymaras e as pequenas estátuas representam para eles a garantia das safras." Pouco se sabe também sobre os uros - um grupo que desenvolveu técnicas de construção de ilhas flutuantes, fabricadas com uma espécie de junco chamado totora, sobre as quais vivia. "Comunidades inteiras moravam nessas ilhas "navegando" no Lago Titicaca", afirma. O costume, ainda existente, data da época da invasão dos espanhóis. O junco em contato com água se estraga em média de seis em seis meses, sendo substituído aos poucos pela parte da superfície da ilha. "Tudo isso, visto de perto, comprova que o continente sul-americano tem muito mais a contar do que os livros se limitaram a dizer até agora."

Estudioso da cultura pré-colombiana e período colonial americano, Maziero sempre desenvolveu atividades relacionadas à organização de arquivos históricos e iconográficos - em 1992, formou-se no VII Curso de Organização em Arquivos Históricos pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP - e já está com um livro pronto, onde conta todos os detalhes de sua aventura, relata as lendas e cultura das antigas civilizações pré-incaicas e explica o roteiro que percorreu com mapas, dicas de locais, planejamento, preparação física, alimentos apropriados para o consumo, além de várias fotos. Para o lançamento da obra, Maziero aguarda patrocínio.

Fonte:
Brasil, Jornal da USP(Ano XIV, Nº 450 - 19 a 25/10/1998)

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