Huaqueros, os caçadores de relíquias

Eles estão por toda a América hispânica e, mesmo combatidos, a sua importância não pode ser negada.

Rogério Cezar de Cerqueira Leite - O Estado de S.Paulo

Amaldiçoados foram os "huaqueros" que descobriram e exploraram a "huaca", ou melhor, o túmulo do Senhor de Sicam. Segundo relatos oficiais, quando os arqueólogos lá chegaram 70% do tesouro do Senhor de Sicam já havia sido "roubado" pelos huaqueros locais, que inclusive reclamando propriedade sobre os achados e as riquezas ainda não desenterradas, opuseram grande resistência ao ingresso dos acadêmicos. São chamados huaqueros os cidadãos simples, agricultores ou comerciantes locais, que se dedicam em tempo parcial ou integral à exploração de objetos pré-colombianos que encontram em túmulos, templos, etc. soterrados quase sempre em montículos (huacas).

Em todos os países de América Hispânica, os huaqueros são considerados criminosos e, consequentemente, perseguidos pela polícia. Em contraste, existem nesses países, Peru, Equador, Bolívia, Colômbia, México, Guatemala, Costa Rica, etc., uma quantidade enorme de Museus Particulares e Coleções privadas riquíssimas que gozam de apoio e de prestígio, não somente da população como também dos governos respectivos. Mas de onde vieram essas relíquias. Os governos nunca realizaram, de fato, buscas sistemáticas. E apenas recentemente vêm as universidades locais e estrangeiras se envolvendo. É óbvio que essas magníficas coleções, privadas ou em museus, só existem por causa dos huaqueros.

Há cerca de 10 ou 12 anos me comovi com um apelo veemente de um então ministro da Cultura de um país andino, ele mesmo artista conhecido local e internacionalmente, para que não fossem vendidos objetos arqueológicos a estrangeiros. No dia seguinte, visitei seu magnífico museu particular, aberto ao público, e lá adquiri da diretora do museu, filha do ministro da Cultura, três peças La Tolita, catalogadas pelo museu. Em outras ocasiões e em outros países, adquiri obras arqueológicas de museus particulares e estatais, de fundações e de huaqueros profissionais respeitáveis.
Suponhamos que huaqueros não tivessem jamais existido. Essas magníficas cerâmicas mochica, nasca, chimú, etc. estariam na sua grande maioria enterradas e, as poucas visíveis, ficariam nos bolorentos museus das universidades andinas e mexicanas, acessíveis quase exclusivamente aos estudiosos locais.

Um dos museus particulares do Peru tem um depósito com 45.000 peças, o que seria suficiente para povoar 200 instituições de bom porte, e ter como consequência uma difusão mundial dessas esplêndidas culturas, à altura de suas respectivas grandezas.

O México, mais evoluído, permite hoje que peças sejam exportadas sob supervisão do Estado, mas continuam perseguindo os huaqueros. Uma belíssima e inequivocamente autêntica peça Zaapoteca foi-me vendida como réplica (a preços de original) como meio de escapar ao policiamento.

Os barões das artes pré-colombianas atacam os huaqueros dizendo que são maléficos para a reconstituição dos locais arqueológicos e para a identificação das origens das peças, que são vendidas sem essas informações. Ora, se os huaqueros fossem fazer esse serviço, para que é que precisaríamos de arqueólogos?

Também não procede a acusação de que os huaqueros danificam as peças que encontram. Em primeiro lugar, porque precisam salvaguardar o seu interesse financeiro. Mas também por motivos de ordem religiosa. Eles acreditam que estão subtraindo um bem de um antepassado, pois encontram por vezes essas relíquias junto a esqueletos e pertences diversos de mortos lá enterrados. Para eles, essa ação é uma transgressão de um tabu, e, por isso a operação se torna ritualizada. Eis por que a intensidade da exploração de "huacas" se amplia enormemente durante a Semana Santa. Eles também estão conscientes de que as reparações grosseiras que fazem em peças danificadas pelo tempo, ou eventualmente por eles mesmos, não disfarçam o dano e ainda por cima desvalorizam os objetos. A figura 1 mostra um vaso antropomórfico Chancay com um restauro grosseiro, facilmente detectável. É óbvio que quem o fez sabia que o valor da peça seria reduzido. E, no entanto, esse fenômeno se reproduz inúmeras vezes, não somente nas culturas andinas e mezzo-americanas, mas em praticamente todo o mundo. A figura 2 mostra uma urna funerária secundária Maracá, do Estado do Pará, em que reparos extensos, mais que 50% da superfície, foram realizados. Nas décadas de 60 e 70, quando esses objetos ainda eram encontrados com facilidade na região, era praticamente impossível achar urnas Maracás sem reformas desse tipo.

O fenômeno talvez tenha escapado à percepção de estudiosos de arte africana, talvez porque o material dominante usado em escultura na África, seja a madeira, que não aceita restauros com facilidade. Objetos africanos de cerâmica mostram também reparos. Todavia, os consertos mais notáveis são aqueles em artefatos de bronze. A figura 3 mostra uma cabeça Ifê, tradicional dos séculos 15 e 16, que teve a sua parte inferior refeita com placas de latão, liga que só veio a ser utilizada muito mais tarde, século 18, na região. Como a essa época essas peças não tinham valor financeiro, a reparação só pode ter ocorrido por razão de ordem subjetiva.

Não se deve atribuir, portanto, um motivo malicioso aos reparos, quase sempre primitivos, em peças de importância arqueológica, quando realizados por huaqueros. Acredito mesmo que constituem um legítimo acréscimo à significância arqueológica desses objetos. Uma reavaliação da importância e das consequências positivas das ações desses "ladrões" de túmulos deveria entrar em pauta.

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE É MEMBRO DO CONSELHO EDITORIAL DA FOLHA DE S.PAULO E PROFESSOR EMÉRITO DA UNICAMP

Fonte: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20101212/not_imp652638,0.php (12/12/2010)

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